Os encontros entre gênios costumam render documentários inesquecíveis. Foi assim com Maradona por Kusturica (2008), que o cineasta sérvio dedicou ao craque argentino, e Meu Melhor Inimigo (1999), de Werner Herzog sobre Klaus Kinski. É também o caso de O Sal da Terra, longa sobre Sebastião Salgado assinado pelo alemão Wim Wenders (em parceria com Juliano Salgado, filho do fotógrafo). Indicado ao Oscar, premiado em Cannes e no César francês, o filme estreia nesta quinta-feira nos cinemas do Brasil.
É verdade que, diferentemente dos outros dois títulos citados, a riqueza de O Sal da Terra não se faz no exame minucioso de uma personalidade controversa. A rigor, a dupla de diretores vislumbra seu biografado com inabalável reverência. Também é verdade, no entanto, que o Sebastião Salgado revelado no filme é um homem dedicado ao trabalho e às causas sociais, mas um tanto ausente no crescimento do filho.
- Meu pai e eu éramos distantes. Ele viajava demais, passava muito tempo longe - conta Juliano a ZH. - Foi através da câmera que comecei a vê-lo de um jeito diferente. E entendê-lo.
Entrevista: Sebastião Salgado fala sobre Gênesis
Fotógrafo apresentou exposição em Porto Alegre em 2014
Filmar Sebastião foi uma espécie de terapia para Juliano Salgado, que faz vídeos do pai desde 1996 - vídeos estes que acabaram sendo o embrião de O Sal da Terra. É curioso observar que, entre os dois autores, o grande fã do fotógrafo é Wenders. É o alemão o narrador da maior parte do filme, desde as sequências iniciais, quando inclusive explica o porquê de sua presença no projeto.
- Queríamos alguém com uma visão distanciada - lembra Juliano. - O longa surgiu de fato em 2009, quando Sebastião me convidou para viajar com ele. Ali captei imagens, que depois juntei com o que tinha de arquivo. A primeira montagem desse material, totalizando uns 20 minutos, foi reveladora, emocionante para nós dois. Mas não havia estofo para um longa. Precisávamos o olhar de outro artista.
Salgado, o pai, abre o coração nas conversas com o diretor de Paris, Texas (1984) e Pina (2011). Os dois reveem toda a trajetória do fotógrafo, fixando-se nos causos por trás das fotos emblemáticas de séries históricas, de Trabalhadores, na década de 1990, até a recente Gênesis, passando por momentos de forte impacto como o testemunho do genocídio em Ruanda (onde ele esteve para produzir Êxodos, finalizado em 2000). É impossível não se emocionar.
Para o fotógrafo, foi inviável seguir testemunhando tanta barbárie depois do que ele viu no continente africano. Um dos pontos altos de O Sal da Terra é a abordagem dessa virada em sua carreira. A mão de Juliano entra firme nesse instante em que Sebastião retorna à fazenda onde nasceu (em Aimorés, MG), testemunha a morte de seu pai e toma duas decisões: dedicar-se à fotografia ambiental, mais do que social, e lançar o Instituto Terra, que plantou 2,5 milhões de árvores e transformou por completo aquela região do sertão mineiro devastada pela seca.
De certo modo, são os contrastes que enriquecem O Sal da Terra. Os contrastes entre as imagens atuais e as dos vídeos caseiros de tempos remotos. Entre o preto e branco estilizado do início do filme (opção um tanto óbvia) e o colorido realista ao final (mais adequado à dureza do que se vê). Entre o olhar de Wenders para Sebastião, e vice-versa, o que rende uma simbólica brincadeira com os dois e suas câmeras à mão.
Os grandes momentos de O Sal da Terra são muitos. Suplantam os defeitos do filme, transformando a experiência da fruição em algo absolutamente extraordinário.
O Sal da Terra
De Wim Wenders e Juliano Salgado.
Documentário, França/Brasil/Itália, 2014, 110 minutos.
Estreia nesta quinta-feira no circuito.
Cotação: ótimo.