Poderia ser uma aventura juvenil de consequências desastrosas, mas acabou se tornando a maior editora do Rio Grande do Sul. Ivan Pinheiro Machado, 63 anos, fundou a L&PM Editores ao lado do amigo Paulo de Almeida Lima em 24 de agosto de 1974.
A dupla buscava oferecer títulos que colocassem em xeque as arbitrariedades da ditadura militar e, ainda nos anos 1970, emplacou seus primeiros best-sellers. Hoje, Ivan pode se gabar de um feito. Um dos líderes da empresa que mudou o cenário editorial brasileiro ajudando a popularizar os livros em formato pocket no país.
Prestes a completar 40 anos, a L&PM está presente em todo o Brasil, levando seu catálogo com mais de mil livros de bolso para além das livrarias, acessível em diferentes pontos de venda - bancas, farmácias, aeroportos e supermercados. Na entrevista a seguir, Pinheiro Machado relembra suas primeiras aventuras editoriais sob a censura militar, analisa as transformações do mercado no setor e compara as políticas públicas internacionais e nacionais para o livro.
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ZH - A L&PM está completando 40 anos. Como foi o início dessa empreitada?
Machado - O (Paulo de Almeida) Lima e eu tínhamos uma agência de publicidade que quebrou, porque a gente era muito guri, com cerca de 21 ou 22 anos. Eu era fotógrafo e jornalista - função que exerci até a década de 1990. Quando terminamos a agência, estávamos no meio daquela efervescência política da faculdade. Eu e o (cartunista) Edgar Vasques já tínhamos trabalhado juntos na Folha da Manhã. A ditadura não gostava do Rango (personagem de Vasques), mas tolerava porque estava em um jornal do Breno Caldas, que era muito influente.
Quase querendo fazer uma provocação, um dia pensamos: "Quem sabe a gente publica o Rango?". Quem nos deu a impressão foi o Alfredo Oliveira, o Carioca, que era um dos principais assessores do Grêmio e tinha uma gráfica. Quando a gente chegou à gráfica para imprimir, o encarregado nos avisou: "O doutor Alfredo não liberou a tinta preta". Tinha lá um monte de latas com restos de azul, amarelo, vermelho... Juntamos todas aquelas sobras, e resultou um marrom. Essa é a história do nosso primeiro livro, o Rango 1.
ZH - Como foi o lançamento?
Machado - Conseguimos fazer a maior provocação que queríamos: lançar o livro na Faculdade de Arquitetura da UFRGS. Foi um dos maiores eventos da época da chamada resistência democrática. Só para dar uma ideia, vendemos nesta noite quase 2 mil livros. Até hoje não conseguimos repetir esse número em um lançamento. Estavam presentes desde o Paulo Brossard até o mais clandestino dos terroristas. Todo mundo que estava engajado contra a ditadura passou por lá. Isso alavancou a grande venda na Feira do Livro.
ZH - E o livro não enfrentou problemas com a ditadura militar?
Machado - Depois da Feira, fui chamado pela Polícia Federal. Eu tinha 21 anos. Quando alguém recebia um chamado assim, não sabia se conseguiria sair, é muito difícil para quem não viveu aquela época entender como era. A gente não tinha nenhum tipo de garantia, podia sumir e não aparecer mais. Meu pai já tinha sido preso cinco vezes, ele havia sido deputado do Partido Comunista. Fiquei umas duas horas lá, já estava todo mundo apavorado. O policial leu todo o livro na minha frente e me disse: "Tu não vai sair daqui... Isso aqui é ilegal, é crime, isso é uma revistinha, cadê teu registro na censura? Isso aqui não é livro coisa nenhuma". Para fazer uma revista, era preciso ter um registro especial do departamento de censura, o que não ocorria com os livros. Comecei a me apavorar, aí lembrei que o prefácio era do Erico Verissimo e começava assim: "Recomendo este livro com o maior entusiasmo". Empurrei para o policial, ele leu e disse: "Te manda, guri! Mas olha aqui: abre teu olho porque estamos de olho em vocês".
ZH - Pouco depois, houve a apreensão de "Memórias: A Verdade de um Revolucionário", do general Olympio Mourão Filho.
Machado - Sim, em 1978. O livro dizia horrores dos militares. Apreenderam o livro da boca da máquina. O meu pai descobriu no Fórum que a apreensão iria ser feita, e foi correndo nos avisar. Quando eu estava saindo, o delegado apareceu, e fui saindo: "Dá licença, eu preciso ir ao aeroporto" ou qualquer desculpa assim. Aí, o delegado: "Tu não tá entendendo, guri: tu tá preso!". Meu pai me apontou o carro do Jornal do Brasil, que estava por lá, esperei eles virarem de costas e me atirei para dentro do carro, que foi saindo bem devagarinho. Precisei ficar uns dois dias sumido. Foi a última apreensão da ditadura, e conseguimos liberar o livro seis meses depois, em uma batalha judicial.
ZH - Mesmo com o espírito combativo e certo ar de bravata, a editora se consolidou. Havia essa pretensão?
Machado - Não, foram as circunstâncias que nos determinaram. De repente, tu és o campeão de vendas da Feira do Livro. O que fazer depois disso? Editar outro livro. Ganhar dinheiro a gente nunca ganhou (risos). O que conseguimos fazer foi montar uma empresa e viver dessa empresa. Isso custou mais de 10 anos. A L&PM surgiu para o Brasil em 1978, com a apreensão do Mourão Filho. Pela mesma época, publicamos "Cuca Fundida", do Woody Allen, com tradução do Ruy Castro. Eu tinha visto um filme de Allen e gostei demais. Na Feira de Frankfurt, conheci o agente dele e consegui publicar aqui. O que acontece em seguida? "Noivo Neurótico, Noiva Nervosa" ganha quatro Oscar! O livro foi para a lista da Veja, chegou ao primeiro lugar. Foi aí que conhecemos o gosto do best-seller. Mas o upgrade da editora como business começa em 1981, com "O Analista de Bagé", do Verissimo: explodiu na Feira do Livro e depois foi para a capa da Veja.
ZH - Houve casos de livros que se arrependeu de não editar?
Machado - Sim. Lembro de um em especial. Nós éramos os editores do Tom Wolfe. Em uma Feira em Frankfurt, encontrei seu agente. Ele me disse: "Tenho um novo romance do Tom Wolfe" e me empurrou um papel. Era a sinopse. Respondi: "Tu acha que vou comprar um livro por US$ 8 mil lendo a sinopse?". Na época, era muito dinheiro. Neguei. Era "A Fogueira das Vaidades", que deve ter vendido uns 150 mil exemplares pela Rocco, virou filme com o Bruce Willis, estourou mesmo. Esse foi o cavalo que passou encilhado que mais lamento de ter perdido.
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ZH - A L&PM é conhecida por popularizar o pocket no país, contrariando o mito de que o brasileiro não comprava livros de bolso.
Machado - Em 1995, o Plano Real acabou com a inflação, e os juros foram lá para cima. Vivíamos em cima do crédito e, por conta dessa dependência, começamos a pagar muitos juros. Além disso, o mercado ficou estagnado. Quase fechamos. Foi aí que criamos a coleção L&PM Pocket. Era a única coisa que nós tínhamos: uma ideia. Havia um dogma no mercado, que ouvi inclusive de grandes editores: já que havia poucos leitores no Brasil, não valia a pena fazer um livro de R$ 10, porque o consumidor que pagaria R$ 10 seria capaz de pagar R$ 30. Fomos vencendo o preconceito dos livreiros, do público, do autor e da imprensa. Muitos consideravam o livro de bolso um sublivro. Por conta do preconceito de alguns autores, e também porque a gente estava sem dinheiro para pagar direitos autorais, começamos a editar livros de domínio público. Reeditamos mais de 600 clássicos da literatura universal com boas traduções. Lançamos 22 peças de Shakespeare no mercado, só "Hamlet" já vendeu mais de 150 mil exemplares.
ZH - A mais recente polêmica no meio literário foi a questão das biografias: artistas como Roberto Carlos se manifestando a favor das biografias autorizadas, e editores defendendo a liberdade de publicação, independentemente da posição do biografado.
Machado - Ah sim, isso (a necessidade de autorização) objetivamente é censura. Eu adorava o Roberto Carlos. Nunca mais ouvi. Tenho nojo. Ele vai tristemente entrar para a história como o homem que tentou trazer as trevas de volta. E nós, que vimos pessoas morrerem ou terem sua integridade física ameaçada durante o regime militar, sabemos que só um filho da ditadura faria isso. Embora o Roberto tenha mais de 70 anos, não viveu aqueles tempos porque estava andando de calhambeque na Rua Augusta.
ZH - Como tem visto a compra de editoras nacionais por multinacionais?
Machado - É um movimento natural do mercado. O problema é que esse tipo de movimento tem tirado a identidade de muitas editoras. A verdade é que hoje o mercado é muito mais agressivo do que na década de 1980. É preciso ter ferramentas e armas para combater. A gente não pode ter a ideia de "fundação". Às vezes, chega alguém para mim e diz: "Tu tens que publicar meu livro". Como se eu tivesse essa obrigação. Nós temos um Estado profundamente omisso, e muitas vezes se joga sobre os editores a responsabilidade de fazer a roda da cultura brasileira andar e se renovar. Acredito que temos um papel dentro disso, e acho brilhante o papel de muitas editoras que, como nós, lançam novos autores e mantêm os seus princípios... Mas esse espírito de fundação não pode imperar. A maior parte das editoras foi comprada por grupos estrangeiros, nós também queremos nos fortalecer, mas não dessa forma, sob hipótese alguma.
ZH - O senhor disse que o Estado brasileiro é omisso em relação às editoras.
Machado - Vou dar apenas um exemplo: nós compramos os direitos de "O Idiota da Família", de Jean-Paul Sartre. Não tinha dinheiro para editar isso, tenho uma parte, mas a gente ia dando um jeito... Aí, recebo um telefonema do adido cultural da embaixada da França me dizendo algo como: "Soube pela editora Gallimard que foram vendidos para o Brasil os direitos de "O Idiota da Família". Quero lhe dizer que o Ministério da Cultura da França apoia economicamente o projeto. Nós pagamos 60% do que o senhor gastar na tradução". Isso existe na Alemanha, na Noruega e em diversos outros países. É uma ideia de nacionalidade.
ZH - Sobre o público leitor gaúcho, há alguma particularidade?
Machado - O público que paga a conta é de São Paulo, com 54% das vendas. Hoje, o livro que se compra em uma grande rede de livrarias em um shopping de Porto Alegre vem de São Paulo. Às vezes, quando é o caso de um grande best-seller, como David Coimbra, Martha Medeiros, Fernando Lucchese ou J. J. Camargo, a gente consegue colocar direto aqui, mas são exceções.
ZH - Qual o espaço hoje, no mercado, para os livros em formato digital?
Machado - Na L&PM, são 2% das vendas. Não deu certo, talvez dê certo no futuro, mas será mais distante do que a gente imaginava. Tinha expectativa que essa transição fosse mais rápida. O livro digital é muito cômodo para os negócios, ao contrário do que as pessoas pensam, para nós seria muito positivo: eu poderia vender meu livro sem livraria, sem comprar papel e sem usar gráfica, seria uma maravilha. O problema é que as pessoas que estão criando as ideias para os livros digitais não entendem nada de cultura. E a importância do objeto livro é um mistério. Nos EUA, por exemplo, o livro digital chegou a ocupar 18%, mas estagnou aí, e deve começar a baixar.
ZH - Muita gente reclama do preço do livro no país. O senhor acredita que é um produto caro?
Machado - É muito barato. Principalmente se for comparado à Europa e aos EUA. Olha aqui (pega ao acaso um livro francês na estante): este livro de bolso custa 15 euros, cerca de R$ 50. Dias atrás, estava em Ouro Preto e um autor reclamou que os livros eram caros. Respondi: "Caro é o direito autoral, se baixar o direito autoral para 5% vai baratear". É 10% do preço de capa. Quando vendo um livro de R$ 60 para uma grande rede de livrarias a R$ 30, R$ 6 ficam com o autor. Então o autor é dono de 20% da editora, ninguém ganha 20% nesse ciclo, nem a gráfica, nem os editores.
ZH - A livraria ganha 50% do total.
Machado - É, mas aí é a cultura do shopping center, isso é complicado. São redes grandes, se alguém faz um pedido grande, é difícil negar um preço menor.
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