Por todo o país, são muitas as manifestações que fazem do Carnaval um dos principais símbolos da brasilidade imaginada por estrangeiros e projetada por estadistas e intelectuais. Nas escolas de samba, nos blocos de rua, trios elétricos, bandas, clubes etc., o calendário carnavalesco (cada vez mais longo) impõe-se nos primeiros meses do ano e reforça a imagem do país alegre e festeiro ao longo do tempo construída.
Em Porto Alegre não é diferente. O Carnaval das escolas de samba mantém-se firme e reunindo dezenas de milhares de pessoas nas "Descidas da Borges", nas muambas e nos desfiles, além da mobilização o ano inteiro nas comunidades. Nos últimos anos, a Capital vivencia também um boom de blocos de rua, que atraem multidões nos períodos pré e pós carnavalesco no bairro Cidade Baixa. Mas há uma peculiaridade no Carnaval (e na cultura) de Porto Alegre que é pouco observada: as tribos carnavalescas.
Surgidas a partir da década de 1940, as tribos já foram maioria no Carnaval da cidade. Com a chegada do modelo carioca de escola de samba e sua crescente hegemonização, entraram em decadência, restando hoje apenas duas: Os Comanches, situada na Vila João Pessoa (Partenon), e Guaianazes, no bairro Medianeira _ até 2004, existia ainda a tribo Os Tapuias, do bairro Azenha.
As escolas de samba, surgidas no Rio de Janeiro em fins da década de 1920 e início dos 1930, desde os seus primórdios estiveram comprometidas com a construção de uma "nacionalidade" e "brasilidade". A obrigatoriedade de temas pátrios, vigente já no primeiro estatuto da União das Escolas de Samba, fundou uma característica essencial nos enredos: falar dos grandes "vultos históricos" e episódios da História do Brasil. No entanto, esses "vultos" e essa "História" eram praticamente só de brancos (e das elites), excluindo dois dos principais elementos da formação étnica brasileira: o negro (sujeito principal das escolas de samba) e o índio.
No Rio, o negro demoraria pelo menos duas décadas para virar enredo de sua própria escola, e o índio continuaria secundarizado, tendo presença rara nos desfiles. Por outro lado, em Porto Alegre, já nos anos 1940 o componente indígena ganharia protagonismo: em 19 de abril de 1945 (Dia do Índio, portanto) habitantes da periferia de Porto Alegre fundavam a tribo Caetés, e anos depois promoveriam o primeiro concurso de tribos carnavalescas. Assumir a identidade indígena como "a" identidade brasileira, em sintonia com ideologias vigentes desde a época do Romantismo, era uma forma daqueles negros e brancos da periferia urbana se sentirem socialmente aceitos e parte de um projeto de nação.
Nesse contexto de busca de uma cultura nacional, poderia se supor um nacionalismo exacerbado destas agremiações e um patriotismo à la Policarpo Quaresma. Mas não é o que ocorre: os nomes escolhidos para as tribos não necessariamente são de comunidades indígenas brasileiras, nem o nome de suas sedes, chamadas de "tabas", precisa ter relação com a tribo que dá título à agremiação. Os Comanches, por exemplo, são um grupo étnico do sul dos Estados Unidos, que no Brasil ficaram conhecidos pelos filmes western e pelas revistas em quadrinhos de Tex Willer. Valdir Ribeiro, atual presidente e um dos fundadores da tribo carnavalesca em 1959, explicou que o primeiro nome escolhido foi "Os Tupis". Mais tarde, os integrantes, em votação, mudaram para "Os Comanches", inspirados pelo cinema americano. A sua sede é a "Taba de Urupá", que remete ao grupo indígena Urupás, de Rondônia _ possuidor de uma língua própria e nome de um município naquele Estado.
Percebem-se as mais diversas procedências nos nomes das 17 tribos carnavalescas que Porto Alegre já teve. Os carnavalescos gaúchos se inspiraram tanto em povos conhecidos, como os Guaranis, mas também em grupos indígenas menos numerosos, ou até extintos, como os guaianás (a tribo carnavalesca seria "Guaianazes"). Os indígenas do Rio Grande do Sul e do Uruguai seriam lembrados, com Os Arachaneses e Os Charruas. Duas entidades levariam nomes de comunidades indígenas dos Estados Unidos _ além d'Os Comanches, houve Os Navajos.
Essa "inautenticidade" é um elemento importante no estudo das tribos de Carnaval. Analisando os enredos dos últimos 10 anos das duas agremiações remanescentes, verifica-se uma ampla variedade de temas, tempos e espaços: os incas peruanos, "da Sibéria ao México", o Cacique Seattle, os caingangues do norte do Rio Grande do Sul, os últimos índios charruas etc.
Características próprias
Muitas são as diferenças estéticas entre as tribos carnavalescas e as escolas de samba. Além da canção, que não é o samba-enredo, mas o hino, todos os integrantes da direção e as alas têm nome indígena, assim como as funções _ caciques, guerreiros, pajés etc. No figurino, há o uso de sapatilhas, e não de sapatos; outros adereços comuns são penas, colares, cocares, flechas, lanças, escudos. Outra diferença substancial para as escolas de samba está nos quesitos avaliados. Cabe ressaltar que os critérios de julgamento exercem papel fundamental para a compreensão do desfile das tribos carnavalescas enquanto manifestação artística. Elas preparam o seu espetáculo não apenas para "folcloricamente" se apresentar, mas para vencer. Ainda que haja uma disparidade entre as duas tribos em número de títulos _ enquanto os Guaianazes venceram quatro, Os Comanches contam com 30 campeonatos (no período entre 1997 e 2013, perdeu somente duas vezes), ambas entram como o intuito de "ganhar" o carnaval em sua particular disputa. Os quesitos do concurso de tribos são: bateria, harmonia, evolução, enredo, hino, alegorias, fantasia, encenação.
Aliás, a encenação é uma marca sui generis. No meio do desfile, há uma interrupção e um ritual indígena é dramatizado. O ato deve representar elementos do enredo, entoando, porém, outro canto e dançando em outro ritmo.
A canção das tribos carnavalescas, o hino, deve representar em versos o enredo narrado pela agremiação (mesmo papel desempenhado pelo samba-enredo das escolas de samba). As tribos carnavalescas influenciaram a formação de vários músicos gaúchos e a constituição de gêneros musicais como o suingue _ a versão gaúcha do samba-rock. Conforme o musicólogo Mateus Berger Kuschik, em seu recente Suingue, Samba-rock e Balanço (Medianiz, 2013), as tribos, ao preservarem elementos rítmicos próprios, como a levada do ziguiné, exerceram "forte influência sobre a construção de uma música com peculiaridades rítmicas em relação a outros lugares do país. Esse cruzamento resultou em uma sonoridade própria, única".
Espírito melancólico
Há uma característica adjetiva na canção das tribos que é marcante na literatura produzida em Porto Alegre e no Rio Grande do Sul: a melancolia. O professor e músico Adair Antunes, jurado no carnaval de 2013, escreve em sua justificativa de nota para a tribo Os Comanches: "Letra e melodia fazem do trabalho musical um conjunto de qualidade. O tom menor deixou a música melancólica, que é o verdadeiro espírito da tribo carnavalesca. Merece a nota máxima".
Luís Augusto Fischer e Sérgio Luís Fischer, em Mario Quintana: Uma Vida para a Poesia (WS Editor, 2006), percebem o traço da melancolia em dois dos maiores poetas gaúchos (e brasileiros): Mário Quintana e Lupicínio Rodrigues. Apesar de terem sido contemporâneos por bastante tempo, não se encontraram "produtivamente", segundo os autores. Mesmo assim, "apresentam mais de uma característica estética comum, permitindo comparações que talvez revelem algo sobre a alma da cidade", como o traço melancólico.
Não é difícil reconhecer a melancolia como um traço distintivo na cultura indígena quando se verifica na História o extermínio praticado contra os povos nativos. Logo, não poderia estar ausente na modalidade de carnaval que tem o índio como mote. Por outras razões, a poesia feita em Porto Alegre traz a melancolia como marca recorrente. Em interação, todas essas influências fazem parte, arrisco hipotetizar, de uma tradição local.
Para exemplificar, dois trechos de hinos das tribos apresentados nos dois últimos anos que mostram uma perceptível marca da melancolia. O primeiro, O Sonho de Paraguassu, composição de Eugenio Silva de Alencar, apresentada pela tribo Os Comanches em 2012, externaliza bem o sentimento melancólico, tanto na letra quanto em sua música, a partir da mística em torno da lenda do português Diogo Álvares e da índia Paraguaçu, eternizada pela tradição oral brasileira e pelo poema épico Caramuru, de Frei Santa Rita Durão: "Viu caravelas a afundar / O Caraíba se salvar / Uma mulher e uma criança / Com mais brilho que o luar / Ela pediu a Paraguassu / Que mandasse Caramuru / A todos resgatar / Pois era seu destino / Na aldeia ir morar".
Já a canção O Grande Tratado da Nação Xinguana, autoria de Mário Bartochak e Cavaco, tema dos Guaianazes em 2013, narra a história de resistência dos povos do Xingu, do norte do Mato Grosso. Na letra, há a clareza de quem é o inimigo e o lamento pela perda da fauna e da flora, causada pelo homem branco "falso, traiçoeiro / cheio de ambição": "Ecoaram os tambores / Lá no alto do Xingu / Quando ouviram-se os rumores / Que vieram de além-mar / Homens brancos pra roubar o nosso ouro / (bis) Dizimando nossas tribos / Nossa fauna e nossa flora / Este cruel inimigo / Tem que sair campo afora".
Peculiares e resistentes, as tribos carnavalescas constituíram-se em uma das mais instigantes manifestações artísticas, tendo fundado e mantido vivo um gênero lítero-musical exercido só por elas, preservando um tipo de cortejo carnavalesco singular, tudo isso num contexto social e cultural popular, sem a interferência do mundo acadêmico ou do poderio econômico. E mais: há quase 70 anos, praticam uma das mais radicais experiências estéticas envolvendo a temática do indianismo, numa perspectiva menos nacionalista e, pode-se dizer, mais ameríndia.