Há algum tempo, sem a menor maldade na alma, publiquei um artigo na internet em que classificava o uso da forma hum (em vez de um) em cheques datilografados como uma "burrice amazônica". Para quê! Mal cheguei a esfregar o olho e uma leitora, muito educada, veio, com luvas de pelica, dar-me um puxão de orelhas: "Caro professor: Gosto muito da forma como se dirige aos seus leitores, e por isso mesmo fiquei espantadíssima com a expressão burrice amazônica na resposta sobre o uso da grafia hum. O Prof. não foi feliz em escolher aquele adjetivo, que me pareceu extremamente preconceituoso contra esta região espetacular do Brasil. Os manauaras não merecem, nem de leve, qualquer pequena insinuação contra eles, nem que seja provocada por uma interpretação errônea. Desculpe-me a ousadia da sugestão, mas acho que uma nota esclarecedora seria uma atitude elegante e justa".
Prezada leitora: quando li sua mensagem, confesso que pensei, cá com meus velhos botões, que eram apenas queixumes de uma leitora mais sensível, de índole mais delicada, desacostumada a termos toscos e deselegantes como aquele burrice que empreguei no artigo. Ia começar a escrever uma resposta brincalhona, quando, para minha surpresa, começaram a pipocar, no meu correio eletrônico, várias outras mensagens _ a maioria do Amapá, do Amazonas e do Acre _ perguntando, em tom furibundo, se eu estava fazendo pouco da inteligência amazônida. Aí fui eu quem ficou espantadíssimo. A senhora tinha razão; o que parecia, para mim, ser muito claro estava chegando a alguns leitores como uma crítica preconceituosa aos habitantes daquela região. Para ter ideia do clima, um desses indignados, ferrabrás de Belém do Pará, veio gritando em maiúsculas: "Você cometeu um erro grosseiro em texto de sua autoria. Dá para perceber a razão de não tratá-lo como professor, pois cometer um erro tão grave como este de nos chamar de burros (nós, amazônicos) é imperdoável! Acaso pensa que na Amazônia só há idiotas?" (convenhamos que ele deixou a bola quicando; meus dedos chegaram a tremer no teclado, mas, num exercício supremo de autocontrole, não respondi o que ele merecia).
Passei a vida ensinando que o responsável pela boa ou má interpretação de qualquer mensagem é aquele que a escreve, não aquele que a lê; não posso, portanto, fugir da raia, e assumo a culpa por não ter tomado as devidas precauções. Faço questão de registrar, porém, que há muitos anos venho lendo (e empregando) amazônico como uma espécie de hipérbole (para quem não lembra, uma figura de exagero), com o sentido de "descomunal, grandioso, de proporções gigantescas", tal como a floresta amazônica ou o rio Amazonas. Esse adjetivo é usado por muitos escritores modernos _ Nelson Rodrigues e Luís Fernando Veríssimo, por exemplo _ exatamente com esse significado. Numa passada rápida por revistas e jornais encontro "um rombo amazônico nas contas públicas"; "o Canadá é grande mesmo para quem está acostumado a proporções amazônicas"; "seu escritório só trata de grandes casos, envolvendo a disputa de heranças amazônicas"; "Neymar assinou um contrato de valores amazônicos"; "os dois senadores estão envolvidos num ódio amazônico"; "senador critica a generosidade amazônica do governo federal para com os bancos"; "Houaiss era dono de uma erudição amazônica"; "os últimos pregões da Bolsa induziram o governo americano a comprar ienes em quantidades amazônicas" _ todos eles exemplos em que amazônico claramente está em sentido figurado. Este emprego do termo sempre foi tão corriqueiro para mim que não podia imaginar que o desconhecessem; não previ essa possibilidade, contudo, e terminei dançando. Tivesse eu escrito "burrice de proporções amazônicas", por exemplo, talvez (vou frisar: talvez, porque, a julgar por alguns dos missivistas, não sei, não...) talvez, repito, tivesse evitado essa interpretação indesejada.
Uma vez esclarecido o mal-entendido, aproveito aqui para fazer uma declaração de princípios: abomino aquela atitude chamada (não sei bem por quê...) de "politicamente correto"; hipócrita e repressiva, ela não passa de um rebento recente do velho fascismo que conhecemos. Quem me lê sabe que costumo dizer o que penso sem fazer muitos rodeios. Agora, nunca me verão falando mal de qualquer região do Brasil e de seus habitantes em geral, porque critico no varejo, nunca no atacado. Se fosse para criticar _ isto é, se um dia os deuses me enlouquecessem e me fizessem abrir a maledicência interestadual (o que, espero, nunca acontecerá), não seria para o Amazonas, o Acre ou o Pará que meus olhos se voltariam; há outros Estados por aí, bem mais próximos, que há muito estão na minha mira...