Eu trabalhava à noite em uma poltrona de couro na minha sala, armada com um iPad, um telefone e um bloco de notas. Minha missão era ver se eu conseguiria reconectar famílias judias e outros com obras de arte saqueadas de seus parentes durante a Segunda Guerra Mundial.
Não possuo um diploma em História ou conhecimentos detalhados sobre o Holocausto. Minha experiência com genealogia é a de uma amadora, uma que rastreou sua própria família até a Espanha do século XV.
Como repórter, porém, meu trabalho é rastrear pessoas. E eu estava intrigada com as dificuldades relatadas por autoridades francesas enquanto tentavam encontrar os herdeiros de mais de 2 mil obras de arte roubadas ou vendidas sob circunstâncias suspeitas durante a guerra - e hoje mantidas em museus franceses.
Nos últimos 60 anos, os franceses devolveram apenas 80 das chamadas obras de arte órfãs. O restante, incluindo algumas obras-primas, espera ou fica exposta em 57 museus franceses - que são seus guardiões até os donos por direito serem encontrados.
Críticos reclamam que o esforço para encontrar seus herdeiros tem sido lento e ineficiente, apesar dos crescentes recursos de genealogia online e o aumento das redes sociais.
Então eu decidi ver se conseguiria rastrear a propriedade de qualquer uma das obras.
Como o governo francês, fui prejudicada pelo fato de que muitas famílias nem mesmo sabem o que perderam. Com o tumulto da guerra e a passagem do tempo, as famílias perdem o rastro de suas posses: parentes morrem e suas histórias e documentos desaparecem.
Sendo assim, uma grande pintura de Gustave Courbet estava exposta na seção impressionista do Musée d`Orsay. Embora ela fosse vista como órfã, ninguém havia se apresentado para reclamá-la. Até agora.
O quadro, retrato dos penhascos de Étretat, na Normandia, em um dia úmido de verão, é a imagem principal em um site do governo que explica e cataloga as obras órfãs. Levei duas semanas para encontrar um de seus prováveis donos: a descendente de uma imigrante judia da Rússia e seu marido, que haviam colocado a pintura de Courbet à venda antes de serem presos e deportados para Auschwitz, onde o casal sem filhos acabou morrendo. Entrei em contato com uma parente, alertando-a do que eu havia descoberto, e ela entrou com um pedido.
Então comecei a estudar mais pinturas órfãs. Os possíveis herdeiros de dois outros quadros levaram mais tempo para serem encontrados. Um era um desenho em giz de Albrecht Dürer, da coleção de obras saqueadas de Hermann Goering. A pintura havia pertencido a uma combatente da resistência francesa, Gabrielle Tuffier, que foi deportada em 1943, depois que a Gestapo a prendeu por transmitir sinais de rádio de um castelo no norte da França.
Seu irmão, Nemours, possuía a outra obra que rastreei, um quadro de Cristo na cruz que havia sido pintado por Rubens. Ele aparentemente havia sido vendido sob ameaça durante a ocupação nazista na França, e recuperado depois da guerra em Linz, na Áustria, onde teria ficado guardado à espera de um museu planejado por Hitler.
Quando encontrei o neto de Nemours Tuffier, Roland Nemours Tuffier, em uma cidade nas adjacências de Paris, disse a ele que o Rubens estava atualmente pendurado no segundo andar do Louvre. Ele disse saber que seus parentes já haviam sido donos da obra.
- Estamos realmente surpresos - completou ele.
Para ser franca, eu tive ajuda. Seu nome é Gilad Japhet, presidente da MyHeritage.com, um grande site de rede social para árvores genealógicas. Quando eu ficava atolada em erros de histórico familiar, mudanças de nome, letras trocadas, anos faltando e falsas correspondências, ele sempre me socorria.
Entretanto, não houve nada de mágico no que fizemos. Pesquisamos árvores genealógicas online e registros de óbitos de Auschwitz, bancos de dados digitais em Israel para vítimas do Holocausto, e o catálogo de fotos da Bibliothèque Nationale. O catálogo do governo francês ofereceu pistas iniciais, com breves resumos da história das pinturas ao longo da década de 1940.
- Se você está tentando solucionar um mistério, existe realmente uma riqueza de informações - declarou Japhet.
Desde 1950 os franceses vêm tentando, com dificuldades, reconectar a arte a seus donos. Em 1996, informações sobre muitas das obras perdidas foram publicadas online e substituídas, em 2004, por um inventário muito mais detalhado. Em 2008, a França patrocinou uma exposição em Israel com 53 das obras órfãs.
No entanto, os críticos sempre alegaram que os franceses estavam basicamente esperando pelos herdeiros aparecerem, e não procurando-os agressivamente. No ano passado, a ministra da Cultura Aurélie Filippetti declarou que os franceses se tornariam mais proativos e nomeou um grupo para estabelecer as origens de obras saqueadas. Em janeiro, ela anunciou a devolução planejada de três obras que haviam sido reivindicadas - incluindo uma paisagem do século XVII de Joos de Momper.
- Após seis meses de trabalho, parece possível identificar a origem de 20 objetos, mesmo que essas pistas sejam apenas hipóteses em andamento - afirmou um porta-voz do ministério em um e-mail que apontava as dificuldades de suas pesquisas adicionais.
Funcionários do ministério não quiseram identificar os outros objetos, mas eles me informaram que um deles não era a paisagem costeira de Courbet, cuja provável herdeira, Sylvie Tafani, eu encontrei no último outono. Ela é neta de Marc Wolfson, que está listado nos registros franceses como antigo proprietário do Courbet. Ele e sua esposa, Ernestine Davidoff, faziam parte de um círculo de elite de expatriados da Rússia que estavam em Paris quando as forças alemãs chegaram.
Muitos judeus, temendo o confisco de propriedades, venderam obras de arte sob ameaça a preços irrisórios. Wolfson consignou seu Courbet a um negociante em 1941 - que, por sua vez, vendeu-o por 350 mil francos ao Museu Folkwang, na Alemanha, de onde ele foi recuperado. Os registros não dizem quanto Wolfson levou dessa transação. Todavia, ele teria sido preso em julho de 1942 e morrido após a deportação. Nesse ponto, a trilha nos registros franceses esfriou.
Imaginei que Wolfson poderia ter sido enviado a Auschwitz, e rastreei registros daquele campo que confirmaram meu palpite. Ele havia morrido lá, algumas semanas após sua prisão.
Meu detetive genealógico, Japhet, teve a ideia de procurar por parentes nas páginas de homenagens publicadas pelo Yad Vashem, o site memorial do Holocausto. Lá ele encontrou uma publicação de 1988 de Sylvie Tafani, que listava seu nome e endereço no sul da França. Infelizmente ela já não morava no local, mas alguém com esse nome estava listada como membro de uma instituição de caridade francesa. Telefonei para a instituição, e eles me deram o seu endereço de e-mail.
Quando falei com ela, Sylvie, de 61 anos, disse não saber nada sobre a pintura de Courbet, "Os Penhascos de Étretat após a Tempestade". Sua mãe, segundo ela, havia ficado tão assustada com a guerra que batizou seus filhos como protestantes.
Funcionários do Louvre e do Musée d'Orsay encaminharam perguntas sobre os quadros que rastreei ao Ministério da Cultura. O órgão respondeu que os franceses estavam agora procurando os descendentes com mais afinco, e havia colocado 15 funcionários e arquivistas de museus nessa tarefa. Novos curadores receberão treinamento adicional em como pesquisar a história das obras órfãs, me explicou a ministra da Cultura, Filippetti, durante uma entrevista.
Quando contei a um dos assessores de Filippetti sobre minhas descobertas, ele disse que o processo pode ser mais difícil para pesquisadores do Estado, pois eles precisam rastrear e verificar o posicionamento legal de cada herdeiro em potencial.
Contudo, o sucesso que eu obtive funciona como um bom presságio para os franceses, conforme eles avançam rumo a uma iniciativa mais vigorosa. Mesmo quando eu tropecei, Japhet, que era meu chefe de torcida e meu ajudante, permaneceu entusiasmado com a capacidade dessa pesquisa de corrigir alguns erros muito antigos.
- Tudo o que você precisa é de bastante curiosidade, um pouco de intelecto e alguma sorte - anunciou ele.
Arte órfã
França tenta devolver obras perdidas durante a Segunda Guerra Mundial
Muitos judeus, temendo o confisco de propriedades, as venderam sob ameaça a preços irrisórios ou as perderam em saques
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