O filme Azul é a Cor Mais Quente, do diretor franco-tunisiano Abdellatif Kechiche, vencedor da Palma de Ouro em Cannes, virou febre entre debatedores e cinéfilos nas redes sociais e fora delas. Podia ser mais um filme sobre identidade de gênero, como outros exemplares que já estiveram em cartaz na Capital, mas vai além, é uma produção que une esse questionamento de identidade com um ensaio preciso sobre o amor e sua perda. É um retrato incisivo dos efeitos da passagem do tempo, dos segredos, da incompreensão em relação ao outro na relação de duas jovens que descobrem a explosão da sexualidade. O desejo feminino, tão pouco explorado e entendido na ficção, é trabalhado com um erotismo delicado e verdadeiro. No filme, o azul representa a liberdade, relação também presente na bandeira francesa (associação já muito bem aproveitada no cinema por Kieslowski) e pontua toda a história. Talvez não seja exagero afirmar que, dentro de alguns anos, Azul é a Cor Mais Quente será visto como marco de uma geração.
A construção do amor de Adèle (Adèle Exarchopoulos) e Emma (Léa Seydoux) é ao mesmo tempo intensa e paciente. Ocorre na conversa, nos beijos, até explodir na transa que, no filme, dura mais de sete minutos e é de tirar o fôlego do espectador. Não se trata de pornografia barata, tão típica de filmes com suas mulheres de unhas postiças e gemidos fakes. Em Azul... o erotismo real, sem o glamour hollywoodiano, é mostrado como todo sexo é: um brutal desejo de dois corpos que se encaixam, se lambem, se fundem e por fim se amam. Não está em jogo, como nos filmes americanos, a suposta sensibilidade exagerada do espectador ao ver duas mulheres transando. O que se vê é o erotismo na sua condição mais crua. Nessa sequência, no cinema, percebe-se o mal estar de alguns - que chegam a abandonar a sala - ou a respiração contida de outros que percebem a verdade do que ali se passa, e se sentem atemorizados.
A intensidade do encontro amoroso faz com que a obra transcenda a categoria de "filme gay". Muito se tem debatido, na crítica, na internet e na crítica pela internet, o porquê da opção feita pelo diretor ao sair do plano fechado, dominante na maior parte do filme, para o plano aberto na cena erótica, como se a intenção fosse a mera exploração dos corpos nus. Algumas lésbicas conservadoras postaram vídeos reclamando que o sexo entre mulheres não é bem assim e acusam o diretor de encenar o amor feminino pelo ponto de vista masculino. Cabe perguntar a essas críticas se existe um único jeito de fazer sexo. Parece-me que não. Não é aconselhável a ninguém pontificar sobre como algo é ou deixa de ser partindo de suas próprias experiências.
Adèle reconhece em Emma a sua paixão, pelo prazer de aprender a ouvi-la. Emma divide sua arte, sua filosofia e transforma Adèle em sua musa pintando sua beleza única. Isoladas em seu amor, as duas não escapam, contudo, do convívio com o mundo que as cerca. De um lado, a cosmopolita família de Emma, que de certa forma nos mostra um pouco da França atual, diante da qual ambas podem viver sua relação gay sem nenhum problema. Em contrapartida, a família pequeno-burguesa e conservadora de Adèle, de quem precisam ocultar a relação. Em outro lance de grande sutileza cinematográfica, o diretor consegue marcar as diferenças entre ambos os núcleos apenas com as imagens dos pratos servidos e preparados pelas duas famílias. Ao enfocar, em close, o simples macarrão da família de Adèle, prato único que seu pai sabe preparar, a câmera não deixa de sugerir também o pensamento fechado daquele homem. O mundo externo também rompe a casca da relação por meio da consciência social. Emma e Adèle se envolvem com o movimento estudantil em defesa do Estado de bem estar social francês. Mostram-se, ambas, garotas engajadas, dispostas a sair pelas ruas gritando, cantando e fazendo festa com os amigos e com os trabalhadores.
Mas se Adèle descobre o amor e o mundo, também descobre a dor da perda, quando a diferença de realidades entre as personagens fica mais forte com o decorrer dos anos, até o choque que já se anunciava como inevitável. Emma, na sua sofisticada vida intelectualizada, vê sua arte submetida ao mercado, com seus amigos mestres e doutores que tudo parecem saber, e passa a cobrar algo a mais de Adèle, que só deseja ser uma professora primária. A diferença de expectativas gera a quebra da confiança, o abandono e o sentimento de estar só, o contrário do amor visto antes como compartilhamento e encontro.
E com ou sem amor a vida segue. Ao contrário de Emma, cuja identidade gay está bem definida, em Adèle nada é claro, tudo ainda está por acontecer, e a perda da paixão é um degrau a mais no caminho da maturidade. A linda personalidade de Adèle, ainda em construção, é um dos elementos que sustentam a beleza deste filme, aberto a várias leituras. Tenha certeza: após assisti-lo, não saímos indiferentes da sala de cinema.