Em 1933, Wilson Baptista e Noel Rosa começaram amistosa polêmica musical responsável por alguns dos mais belos sambas clássicos brasileiros
O que a história parcamente conheceu como "briga" ou "polêmica" entre Wilson Baptista e Noel Rosa nada mais foi do que uma grande gozação entre os dois sambistas, condizente com o estilo carioca de ser, com bom humor, leveza e farta dose de genialidade. Desde que Noel Rosa respondeu ao atrevido e melodioso Lenço no Pescoço, em que Wilson Baptista celebra a caricatura do malandro antigo, de lenço, navalha no bolso, isso em meados de 1933, cada um deles compôs quatro sambas em contestação ao outro como forma de não se dar por vencido aos olhos dos amigos naquele reduto de cafés, cassinos, dancings, botecos e teatros de revista da Lapa e da Praça Tiradentes na Capital Federal dos primeiros anos da República Nova.
Biografia recupera trajetória de Wilson Batista
O irônico é que o retrato poético do malandro era o elogio em mito de uma figura que já havia praticamente desaparecido da realidade. Sujeito de navalha no bolso e tamanco arrastado nem mais existia, mas era dominante na boemia a fascinação pela malandragem da virada do século 20 e por uma vaga e romântica ideia da vadiagem - que, aliás, dava cadeia aos desocupados desde a abolição da escravatura. Apenas dois anos após a Lei Áurea, os negros libertados sem estrutura alguma na rua e sem saber o que fazer, e já havia um decreto que os impedia de circular sem ocupação. Portanto, a ideologia do malandro também vem em resposta à opressão de substrato racista vivida no cotidiano.
Wilson Batista, mulato pobre, era apaixonado pela malandragem. Noel, branco de classe média, talvez fosse mais ainda.
Ambos frequentavam o cabaré Apolo e ambos paqueravam a mesma bailarina, uma morena funcionária da casa, que dançava com os clientes. Não se sabe o nome da moça, que preferiu Wilson. Ambos disputariam mais tarde as atenções de outra dançarina, Ceci, e Wilson novamente levou a melhor. Três anos mais velho, Noel já era o que se podia chamar, dadas as proporções, de uma celebridade. Era autor de um sucesso, Com que Roupa, aparecia nos jornais, concedia entrevistas no rádio, e certamente não deixaria assim o atrevimento do novato. Desancou Lenço no Pescoço com o seu Rapaz Folgado, uma réplica quase que verso a verso com o claro propósito de implicar com quem conquistara sua morena. Só que Noel incluiu na canção uma mensagem contra a malandragem, e essa é a maior prova de gozação, porque, sabidamente, o próprio poeta da Vila era um deles. Vivia duro, sem dinheiro, vendia seus sambas tanto quanto Wilson Baptista, como conta o biógrafo Rodrigo Alzuguir em Wilson Baptista: O Samba Foi Sua Glória.
Os amigos da Lapa, Sylvio Caldas, Francisco Alves, instigavam. Diziam para um "olha, o Noel está fazendo um samba para te atacar", e falavam ao outro "o Wilson vem com um samba de arrasar, e as tréplicas surgiram (veja abaixo a sequência dos sambas) até 1936, sem que a maioria sequer fosse gravada - embora tivessem lugar nas rodas dos botequins e dos cafés. Até que os dois se encontraram e deram risadas de tudo e ainda criaram um único samba em parceria.
Segundo lembra Alzuguir, só não fizeram mais porque Wilson Baptista ficou dois anos fora do Rio. Viajou a Buenos Aires com um outro cantor, Erasmo Silva, formando a Dupla Verde e Amarelo. Passou por São Paulo e fez temporada de quase um mês em Porto Alegre. Em 1937, apresentou-se na então Rádio Difusora, conheceu Lupicínio Rodrigues e o cantor Sadi Nolasco. Na mesma época, Noel Rosa morreu, aos 27 anos.
Nos anos 1950, então um radialista famosíssimo, Almirante recuperou a polêmica e construiu a sua versão, fazendo de Noel o politicamente correto e deixando o lado vilão para Wilson. Só agora, aos 100 anos do nascimento de Wilson Baptista, a verdade é reposta.
A POLÊMICA, FAIXA A FAIXA
Primeiro, Wilson compôs Lenço no Pescoço, uma ode à malandragem gravada em 1933 por Sílvio Caldas:
Meu chapéu do lado
Tamanco arrastando
Lenço no pescoço
Navalha no bolso
Eu passo gingando
Provoco e desafio
Eu tenho orgulho
Em ser tão vadio
Noel Rosa respondeu no mesmo ano com Rapaz Folgado:
Deixa de arrastar o teu tamanco
Pois tamanco nunca foi sandália
E tira do pescoço o lenço branco
Compra sapato e gravata
Joga fora esta navalha que te atrapalha.
Em seguida, Wilson se saiu com Mocinho da Vila:
Você que é mocinho da Vila
Fala muito em violão, barracão e outros fricotes mais
Se não quiser perder o nome
Cuide do seu microfone e deixe
Quem é malandro em paz
Noel contrapôs o antológico Palpite Infeliz:
Quem é você que não sabe o que diz?
Meu Deus do Céu, que palpite infeliz!
Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira,
Oswaldo Cruz e Matriz
Que sempre souberam muito bem
Que a Vila não quer abafar ninguém,
Só quer mostrar que faz samba também
Daí Wilson apelou na gozação com o queixo para dentro de Noel e fez Frankenstein da Vila:
Boa impressão nunca se tem
Quando se encontra um certo alguém
Que até parece um Frankenstein
Mas como diz o rifão:
por uma cara feia perde-se um bom coração
E então Noel e Vadico criaram Feitiço da Vila:
Quem nasce lá na Vila
Nem sequer vacila
Ao abraçar o samba
Que faz dançar os galhos,
Do arvoredo e faz a lua
Nascer mais cedo
Wilson respondeu com um lindo Conversa Fiada:
É conversa fiada dizerem que o samba na Vila tem feitiço
Eu fui ver para crer e não vi nada disso
A Vila é tranquila porém eu vos digo: cuidado!
Antes de irem dormir deem duas voltas no cadeado
Acabam os dois criando um samba em parceria, Terra de Cego, de Wilson Batista, que Noel Rosa transformou em Deixa de ser Convencida, que se refere a uma segunda bailarina da Lapa, Ceci, pela qual tinham interesse.
Deixa de ser convencida
Todos sabem qual é
Teu velho modo de vida
És uma perfeita artista, eu sei bem,
Também fui do trapézio,
Até salto mortal
No arame eu já dei.