Os protestos de rua iniciados no final do primeiro semestre deste ano aqui no Brasil, acima de quaisquer outras repercussões, quase todas ainda nebulosas, deixaram claro: o parlamento brasileiro não presta, acoberta gente que não presta, não serve para o país. Os brasileiros cansaram, até a irritantemente pacata classe média brasileira cansou.
Embora quase nada se diga a este respeito, a partir da ótica política da construção de um Estado Democrático de Direito, que é uma formulação mais ambiciosa do que a intenção programática de um Estado de Direito, o Brasil vive um momento delicado, uma espécie de etapa final esgoelada e interminável do processo de redemocratização iniciado em meados dos anos 1980, redemocratização que não se completa porque há uma grave e contínua crise de representatividade, combinada a uma cidadania deficitária, cujo exercício que deveria levar à sua materialização é flagrantemente deficitário também.
Penso ser impossível falar em cidadania quando o número de pessoas impedidas de acesso a um ensino fundamental de qualidade é tão grande, quando o número de analfabetos e analfabetos funcionais, a conta disso, é igualmente grande. Há toda uma tradição (e um manto de normalidade sobre essa tradição) de privilégios a classes específicas em detrimentos de outras, há um péssimo funcionamento crônico das instituições públicas, há essa praga generalizada dos partidos políticos sem identidade e programa, partidos sem distinção, partidos capazes de tudo.
Mais do que nunca, na história recente, os políticos brasileiros, e os partidos que os abrigam, vivem numa grande farra crescente, desdenhando das necessidades básicas dos contribuintes (no sistema fiscal brasileiro basta comprar uma lata de Coca- Cola e você já é contribuinte, portanto parte do sistema) e dos seus dependentes; necessidades essas relacionadas não só à educação fundamental de qualidade, mas à saúde, à segurança; isso para citar apenas os serviços públicos que, por sua essencialidade, deveriam funcionar minimamente, e não funcionam.
Quando se fala de funcionamento, há uma grande distância entre o Brasil da publicidade oficial e o Brasil de verdade.
E, como se não bastasse isso, há a violência, a repressão, apoiada por governos que chegaram ao poder à custa de militantes que, em décadas passadas, especialmente nos anos setenta e oitenta, foram às ruas exigir abertura política e justiça social, militantes que foram agredidos nas ruas, que foram presos, que sustentaram greves em portas de fábricas, que sustentaram as greves gerais - governos que agora são os mesmos a dar amparo a uma violência policial que, habituada a reprimir os pobres, os de pele mais escura, inclusive na base da tortura e da execução sumária, se direcionou, sem medidas, contra os estudantes, filhos da classe média, e contra a própria classe média que foi às ruas, batendo com cassetetes, usando indiscriminadamente e a distâncias nada seguras ( é o emprego da violência policial chegando, democraticamente e em nova proximidade, à pacata classe-média) spray de pimenta, pistolas de eletrochoque, balas de borracha.
As balas de borracha usadas pela polícia são fabricadas aqui mesmo no Brasil, no estado do Rio de Janeiro. Se disparadas a uma distância inferior a vinte metros, podem jogar alguém ao chão, lacerar a pele, causar lesões oculares permanentes, fraturar ossos e até matar se atingirem o pescoço ou determinadas áreas da fronte ou do tórax.
Seu emprego se tornou assustadoramente comum, afrontando entendimento referendado pela Assembleia Geral das Nações Unidas prescrevendo que a sua utilização só pode ocorrer como último recurso, quando houver resistência armada e que possa a colocar vidas em perigo; seu emprego se tornou a maior prova de que, hoje no Brasil, não se está ferindo apenas pessoas, mas o próprio projeto de democracia.
Não foi à toa que, apesar da repressão praticada pelo Estado brasileiro, centenas de milhares de pessoas ocuparam, e ainda com mais intensidade, as ruas do centro e também de outros bairros aqui no Rio e em outras cidades do país. Da janela do cômodo onde trabalho praticamente o dia inteiro, vejo o Pão de Açúcar, essa rocha com formato curioso, acessada por bondes-teleféricos, mas que, vez e outra, sobretudo quando estou com dificuldade de concentração, me obriga a fechar a cortina ou a janela para que sua beleza não me atrapalhe.
O Rio é esse lugar cuja beleza paisagística é tanta que chega a provocar vertigens, uma beleza com a qual você nunca se acostuma. Qualquer brasileiro sabe que, para além de qualquer estereótipo, o Rio de Janeiro continua sendo a alma do Brasil, o palco lúdico do melhor e do pior do Brasil.
Justamente o Rio de Janeiro, onde a dinâmica nervosa das ruas revela pequenos sinais, sutis, de que os protestos de rua podem reiniciar a qualquer instante, sinais de que os protestos deixaram gravado seu lugar e não irão terminar tão facilmente. Seja no Rio, em São Paulo, Salvador, Manaus, Porto Alegre, não importa, se há um lugar no mundo onde faz sentido viver como escritor neste momento é o Brasil, porque há essa série de leituras e reações a serem cometidas; já não é possível sustentar a ingenuidade de décadas anteriores, já não há como negar que a minha geração - a que era formada pelos jovens militantes dos anos oitenta que juraram não cometer os mesmos erros das gerações anteriores - falhou por não conseguir ser ética, clara, transparente, por continuar favorecendo os poderosos de sempre, por nem sequer chegar perto de um modelo de sociedade no qual a dignidade possa ser garantida pelo trabalho honesto ( e não pelo assistencialismo governamental), por não conseguir eliminar a escravidão, o holocausto das etnias indígenas, o racismo.
Minha geração deveria ir às ruas para protestar contra ela própria, protestar por ter passado cinicamente a esse estado de tolerância e condescendência absolutas com relação ao que atacávamos em nossa juventude.
É difícil resumir este momento da história do Brasil. Tento encará-lo, apesar de tudo, com esperança: os políticos sentiram medo, sentiram- se ameaçados, pela primeira vez em anos isso aconteceu, finalmente aconteceu.
O povo brasileiro já não é tão pacífico assim, é capaz de levar a cabo o que sustentou John Locke, no Segundo Tratado do Governo Civil, quando disse que o povo que confiou nos governantes, nomeando-os, tem o direito de afastá- los quando não agirem conforme os seus deveres. E minha geração tem a chance de melhorar, de se consertar, pelo menos um pouco.
* Escritor, autor de Ithaca Road e Habitante Irreal.
Sociedade em convulsão
Paulo Scott: Cenas de um Brasil que cansou
Que leituras um escritor tem a fazer de um país que continua manifestando sua indignação
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