As trilhas deste causo nos levam ao Saldanha, o Rei do Vanerão.
Mas consta que o Silva Rillo conhecia, de perto e nos pormenores, as artimanhas desse tal Daniel Gutierrez, cuja memória tem os cortes sentimentais de um tango.
E é bom que se diga que São Borja não é de ficar sentadinha num banquinho de cepa, pois brilha em todos os repertórios de causos interioranos.
É lá que viveu seus dias extravagantes esse tal Daniel Gutierrez.
Era um boca floreada, vivia rodeado de mulheres de pouca recomendação.
Só largava o copo para dormir.
Chegava com a alma tangueadita nos bordéis.
Sabia de cor e salteado a hora exata em que passava o avião da Varig, linha Rio de Janeiro/Buenos Aires.
Ao ouvir o assobio da nave, vinha para o meio da rua e, de braços abertos, bradava alto e em bom som:
- Pájaro maldito, mataste Carlitos, no te perdono jamás!
E logo se sentava a uma mesa de canto para ouvir os discos "Del Morocho", com a alma a flor da pele.
Quando o coração corcoveava no peito, cambaleante, num ato de fé, vinha até a foto emoldurada de Gardel e, com voz lamuriante, suspirava:
- Carlitos, si volvieras a la tierra yo me arrodillaba a tus piés.
A cena não tinha feriados, nem sossego.
Numa noite destas, os forjadores de farsa e gozo, y los hay y son tantos, cautelosamente, trocaram a imagem de Gardel por um retrato de Napoleão Bonaparte.
Nel ultimo lunes, feitos os protestos contra o pájaro metálico, ouvidos os tangos e esvaziados os copos, ruma Daniel Gutierrez para seu tributo ao ídolo portenho.
Ante o quadro de inalterada moldura, o ardente súdito soltou sua elegia:
- Carlitos, mi gran Carlitos, cambiaste él sombrero, estás in nuevas pilchas, pero estás más hermoso do que nunca.
E o bordel interiorano seguiu estendendo, pela noite, o acariciante andamento de "El dia in que me quieras".
E a voz de Carlitos, límpida e sonora.
E aquela manta de seda, granfina e cabareteira. E, no mais, o sorriso de Gardel, claro teclado pronto para libertar uma revoada de candentes melodias.