Uma simples evidência: salvo exceções, as narrativas contemporâneas são escritas na primeira pessoa do singular. Entendo o termo "narrativa" como sinônimo de romance, novela, conto. São ficções, histórias inventadas. O assunto se torna complexo, porém, quando percebemos que essa primeira pessoa vive situações que refletem elementos biográficos do autor. O leitor gosta disso, e se decepciona quando percebe que o romance que está lendo é pura imaginação. Talvez isso explique o atual prestígio das biografias e autobiografias.
A lembrar que os romanções de milhentas páginas, em terceira pessoa, que fizeram a delícia de gerações, especialmente no século 19 e primeira metade do século seguinte, encontram-se em vias de superação. Salva-se alguma copiosa literatura de massa, da qual Don Brown é exemplo, mas o leitor dessa categoria de textos está à busca de outros interesses, não estritamente literários.
A "escrita do eu" torna-se esmagadora entre os escritores situados na faixa dos 20-40 anos. Quem há décadas coordena oficinas de criação literária sabe que o aluno de hoje - não o de 30 anos atrás - tem verdadeiro choque quando a proposta é escrever um texto em terceira pessoa. Tentando ir à raiz do assunto: se indagado por que está suando frio, tentando desembaraçar-se do pedido do professor, a interessante resposta é de que o texto lhe parece artificial, "dá a impressão de que não fui eu que o escrevi", ou, simplesmente, "não gosto disso".
Não houvesse densidade estética nessa produção, não mereceria tanto interesse. Estamos falando de narrativas de inegável valor, inventivas e originais, e isso diz tudo. Em primeiro lugar, temos de afastar qualquer juízo de valor sobre o fenômeno da predominância da primeira pessoa, pois a única categoria aceita, em se tratando de literatura, é sua qualidade. Em segundo, é tempo perdido ir à causa de explicações: "hoje é o tempo do eu", "esses jovens vêm da cultura dos blogs" etc. Nenhuma explicação dá conta do fenômeno.
Há, contudo, algo que pode ser pensado: com referenciais estritos, correm o risco de se repetirem. Mas essa é uma legítima e soberana escolha do escritor, e caberá ao seu talento a tarefa de evitar essas armadilhas.
E o leitor, o que pensa a respeito disso?