Desde que deixou o governo Dilma Rousseff há dois anos, Nelson Jobim, 67 anos, saiu da cena política. Ou, ao menos, dos holofotes. Depois das declarações polêmicas sobre colegas de ministério, que lhe custaram o cargo de ministro da Defesa, Jobim pouco tem falado. Na última semana, contudo, quebrou o silêncio ao relembrar episódios marcantes da elaboração da Constituição, exatos 25 anos atrás. À época um novato no Congresso, Jobim logo ganhou posição de destaque durante os embates políticos e jurídicos, sempre ao lado de Ulysses Guimarães, o grande timoneiro do PMDB nos tempos da redemocratização. Após o racha no partido por conta de divergências quanto ao sistema e o tempo de governo, que acabou culminando na criação do PSDB e na saída de Mário Covas, Jobim assumiu a liderança do PMDB. Foi ele também quem criou o expediente das emendas aglutinativas, que permitia um consenso entre as diferentes correntes políticas. Ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), atualmente Jobim dedica-se ao exercício da advocacia e palestras eventuais. A grande biblioteca que mantinha no apartamento em Brasília também desapareceu. Os sete mil exemplares foram divididos entre o escritório e uma outra peça que aluga. Ficaram apenas os livros de Lógica, cujo estudo é um hobby, e de Filosofia Analítica. Em tempos de judicialização da política, Jobim indica a leitura de A Civilização do Espetáculo, obra de Mario Vargas Llosa que faz uma radiografia da sociedade contemporânea, do jornalismo sensacionalista à frivolidade da política. A seguir, os principais trechos da conversa:
Zero Hora - Passados 25 anos da Constituição de 1988, qual foi a grande conquista?
Nelson Jobim - Como diria o Ibsen Pinheiro, muitas partes da Constituição nós fizemos olhando o retrovisor. Você não estava olhando o governo Sarney, você estava olhando a força dos militares. Em alguns casos foram feitas coisas antigas, de ordem econômica principalmente. Manteve-se um Estado intervencionista, o que depois foi caindo. Então a Constituição está se ajustando. Esse ajustamento consolida o projeto democrático. Isso é demonstrado claramente quando você analisa o comportamento das instituições no mais grave dos processos que tivemos: o impeachment do Collor. Você não teve nenhuma fricção institucional, o que mostra que as regras funcionam. A Constituição teve a grande conquista de assegurar primeiro isso. E também garantias dos direitos humanos, de direitos individuais que hoje estão asseguradas de forma permanente.
ZH - E a principal falha?
Jobim - A grande falha está no desenho federativo. De ter levado para a Constituição o sistema tributário. Hoje se fala muito na guerra fiscal dos Estados. Você acha que os governadores que estabelecem benefícios fiscais fazem isso por voluntarismo ou por necessidade? São empurrados a isso porque não há nenhum movimento do Executivo pelo desenvolvimento regional e pelo equilíbrio regional. Essa discussão, brutal, se deu em 1891, depois em 1934, 1946, 1967 e finalmente em 1988. E quando o Executivo resolve dar isenções para estimular o consumo, qual imposto usa? O IPI, que 40% vai para os fundos constitucionais dos Estados e municípios.
ZH - O senhor acha que alguns setores se aproveitaram daquele momento? Que houve um inchaço no texto?
Jobim - Não acho, tenho certeza. Claro que algumas coisas foram saindo com o tempo. Quando trabalhamos, em 1987 e 1988, houve uma grande circulação de pessoas. De associações, de entidades. Grupos organizados que iam fazer lobby - correto, no sentido de levar seus interesses - e a disputa era o que eles abocanhavam do Estado para o seu controle. Aquele volume de textos decorria de um fato pragmático: era mais fácil aprovar uma emenda constitucional do que aprovar uma lei. Mas temos uma Constituição que é plástica, que está progressivamente se ajustando.
ZH - A Constituição assegurou efetivamente direitos fundamentais?
Jobim - Vamos separar as coisas. Você tem os chamados direitos civis e políticos. Todos eles foram assegurados. Depois, tem os direitos econômicos e sociais. Aqui, você tem um problema. Direitos civis e direitos políticos se satisfazem pelo mero exercício. O direito de votar, o direito de ir e vir, etc... Os direitos econômicos e sociais se satisfazem através de uma prestação. Ou seja, alguém tem que pagar. E aí vem um problema básico que é a incapacidade orçamentária do Estado de atender aquilo. Isso depende do desenvolvimento do país. É ele que pode assegurar a satisfação desse direito. Agora, você tem uma coisa certa: o direito se mantém. O problema para a sua satisfação é que são direitos relativos.
ZH - Por que a revisão constitucional, que tinha a função de corrigir distorções e fazer ajustes importantes cinco anos após a promulgação, não deu certo? Até hoje, foram aprovadas apenas seis emendas de revisão.
Jobim - Não deu certo porque o governo não queria. O Itamar (Franco) não queria, não tinha compromisso nenhum com revisão. E havia uma posição contrária dos líderes do governo. O senador Pedro Simon era líder no Senado e o Roberto Freire na Câmara. Ambos não queriam saber da revisão. Mas todo processo político de reformas tem dois momentos. O primeiro é o da catarse. É o momento da choradeira, da gritaria, do derrame de sangue. Passada a catarse, é o momento de decidir. A revisão serviu para a catarse. Todas aquelas reformas econômicas de 1995 a 1997 foram lançadas na rua naquele momento da revisão, naqueles pareceres que fizemos à época. Ou seja, a catarse se deu. Apanhei pra burro. Depois eu mesmo, como ministro da Justiça, propus aquelas emendas que, no momento da revisão, em 1993, não foram apreciadas.
ZH - A Constituição é plástica, o senhor disse. Ela deveria ser tão sujeita a alterações?
Jobim - É uma necessidade política. Depende do tipo, é um processo histórico. Quem gosta de dizer que as Constituições não devem ser mudadas são os autores que comentam as Constituições, para não ter de colocar os livros fora. Acontece que ela é elaborada com dados conjunturais. Muda-se a conjuntura, altera-se a Constituição.
ZH - Mas ela não fica suscetível a casuísmos? Como a reeleição de FHC?
Jobim - Mas isso é um processo democrático. Foi votado, foi aprovado. Acontece que nós temos um viés autoritário. "Eu quero fazer isso", "isso tem que ficar assim". Não é assim que se passa. Você acha que a mentalidade de 1988 é a mentalidade de hoje no país? É outra. Aí você diz: "Ah, mas a constituição americana tem mais de cem anos..." Mas acontece que a americana não entra no detalhismo que entrou a brasileira. Ela é uma definição da relação dos poderes, a definição dos poderes e ponto. E alguns direitos que na época se reconheciam. Então não tem que mexer lá. A nossa não. A nossa foi extensa e vai ter que ser mexida, evidentemente.
ZH - É uma falha ela ser detalhista?
Jobim - Se tu analisares academicamente, podes elaborar todo um discurso de que o texto detalhista é um problema. Mas essa afirmação não faz sentido nenhum, porque quem tem que fazer é o processo político democrático, ele é quem decide se vai ser detalhista ou não.
ZH - Como foi a relação do bloco conservador conhecido como Centrão ?
Jobim - Era uma tarefa difícil com a divisão entre sociais-democratas, que tinham adesão do PT, e os liberais e "centro-direita". O Centrão fazia um texto que dizia X, mas o conjunto de emendas dizia Y, o que inviabilizava as votações. Foi preciso um grande entendimento de negociações dos líderes partidários. O texto do Centrão não passava, e os textos alternativos também não. Teríamos um buraco negro na Constituição. Era muito trabalhoso. Foi daí que encontramos a figura das emendas aglutinativas, criando um texto capaz de ser aprovado.
ZH - Ainda há 112 dispositivos a serem regulamentados. Falta vontade política?
Jobim - Essa expressão "vontade política" é um instrumento retórico que as pessoas não sabem o que significa. Não decidir já é uma decisão política. No processo democrático, para decidir você tem que ter maioria. Sem maioria, não decide. Não decidir significa que não tem maioria para decidir naquele momento. Na Constituição, quando nós percebíamos que não havia maioria sobre determinado tema, nós jogamos para lei. O cacoete de quem está de fora do parlamento é autoritário, gritar "vocês têm que decidir!" Mas como decidir se não há maioria para a decisão? Só no regime autoritário as leis saem academicamente perfeitas. Acho que o país não quer isso.
ZH - À época ela chegou a ser classificada como utópica. Qual é o seu parecer hoje?
Jobim - Todo texto de uma Constituição tem de ser assim, tem de acenar para um horizonte futuro. Se não acenar para um futuro de conquistas, de avanços, ela tem a intenção de congelar o mundo no Estado em que se encontra. No que diz respeito a direitos econômicos e sociais, ela tem um aceno para o futuro.
ZH - Quando o senhor presidia o Supremo Tribunal Federal, houve a polêmica sobre artigos que teriam sido incluídos sem votação na Constituição. Isso ocorreu?
Jobim - Houve uma interpretação equivocada da minha declaração no STF. Ocorreu que, quando terminamos o primeiro turno da votação da Constituição, no qual todas as discussões foram fatiadas em temas, foi feita a redação final, para que pudéssemos votar o segundo turno. Só que percebemos uma série de equívocos. O segundo turno seria usado apenas para confirmar o primeiro, não poderíamos modificar ou acrescentar emendas. Mas precisávamos corrigir os erros. Então, no segundo turno se admitiu de forma direta, com acordo de lideranças, criar emendas para corrigir os erros. Terminada a redação final do segundo turno, na comissão de redação se verificou novos erros. Por acordo de lideranças, se permitiu a inclusão de matérias para acertar a redação, que foi votada mais tarde.
ZH - Recorda de algum exemplo?
Jobim - O artigo 2º da Constituição, que trata da independência dos Três Poderes, não existia. Por quê? Estávamos votando o Parlamentarismo, no qual o Executivo decorre do Legislativo. Mas passou a emenda presidencialista e não tinha nada prevendo a independência dos poderes. Quando chegou na comissão de redação final, doutor Ulysses Guimarães, que presidia a comissão, determinou que, se os líderes aprovassem por unanimidade, os artigos poderiam entrar. Não teve nada dessa história de que eu tinha posto artigos secretos na Constituição.
ZH - Mas os novos artigos foram votados?
Jobim - O doutor Ulysses foi muito hábil. Na votação da redação final, ele acabou criando uma espécie de terceiro turno, votação confirmatória, ratificadora. O PT não quis votar a redação final, mas depois aceitou e seus deputados assinaram a Constituição.
ZH - Como a Constituinte influenciou na formação dos partidos?
Jobim - Na Constituinte começou a ruptura da aliança que elegeu Tancredo Neves no colégio eleitoral. A dissidência da Arena, liderada por José Sarney e Marco Maciel, deu origem ao PFL. Já o PMDB era o grande centro, mas tinha gente que pretendia tomar outras posições. Como sei disso? Quando estávamos no texto das disposições transitórias, o Pimenta da Veiga propôs uma emenda que permitia a criação de um partido pela junção de um determinado número de deputados, que ele já tinha. O PSDB surgiu com aquela emenda, de dissidências estaduais. Havia em São Paulo o grupo do Quércia e o grupo do Serra, uma situação inconciliável. No Paraná, havia de um lado o senador José Richa e do outro o governador Álvaro Dias. Em Minas Gerais, era Pimenta da Veiga de um lado e Newton Cardoso do outro.
ZH - O parlamento da Constituinte era melhor do que o atual?
Jobim - Difícil de dizer, era outro parlamento, tinha outros personagens. O que acontece é que a mídia destaca os defeitos do parlamento. Os defeitos são notícias e as coisas boas, não.