Na sua longa entrevista de semanas atrás, o papa Francisco falou de música. Questões de gosto pessoal, não mais. Foi-se o tempo - e faz tempo - em que Igreja e música eram quase uma coisa só, a Igreja indicando o que a música devia ser. Como no caso dos três Gregórios, o I, o II e o XIII. Nos tempos muito longínquos do primeiro milênio, Gregório I estabeleceu regras e suprimiu qualquer sombra de música que não coubesse no cristianismo. Gregório II, cem anos mais tarde, se preocupou com a disseminação da música da Igreja, num processo de macdonaldização que ocultou tradições locais. Gregório XIII, 700 anos depois, ordenou ao compositor Palestrina "revisar, purgar, corrigir e reformar" os livros de música então em uso na Igreja, cheios de "barbarismos, obscuridades, contrariedades e superfluidades como resultado do desajeitamento ou negligência ou mesmo má fé de compositores". Tarefa tão árdua que não seria impossível ter havido alguma manifestação de rua que, em Roma, clamasse por um "Palestrina Livre!".
Coincidência ou não, as determinações de Gregório XIII coincidiram com o primeiro momento de separação absoluta entre música e Igreja, num caminho sem volta. Desde então, existem centenas de documentos papais sobre a música da Igreja e para as igrejas, não mais para a música como um todo. Numa casca de noz, as coisas aconteceram mais ou menos assim e um documento escrito na esteira do Concílio Vaticano II dá bem a noção de como a Igreja circunscreveu a música ao âmbito religioso e cerimonial, sem ambicionar nada mais. Ali está, na Instrução sobre Música Sacra de 1967:
"entende-se por música sacra aquela música que, criada para a celebração da adoração divina, é dotada de santidade e de excelência de forma".
Paulo VI falou bastante de música. João Paulo I, nos seus pouco mais de 50 dias, não teve tempo para tanto. João Paulo II falou menos e Bento XVI menos ainda. Até mesmo na carta apostólica de 2012 que proclamou Santa Hildegard von Bingen doutora da Igreja, a música merece quase que só uma frase, mesmo que Hildegard seja importantíssima para a compreensão da música medieval. Para Bento XVI, "ela foi também compositora de música sacra" - apenas isso. O fato de ter sido a primeira e que sua música esteja imbuída de um misticismo quase alucinatório são coisas que não parecem dignas de nota diante de tantas outras considerações teológicas.
E agora o papa Francisco. Obviamente, as suas declarações muito curtas sobre música são totalmente informais, no âmbito de uma entrevista que alterna os grandes temas polêmicos e a memória dos anos de formação e da experiência de vida. Precisamente aí entra a música. Não se trata de um decreto formal, são não mais do que observações ao sabor das remembranças. E o que disse o Papa? Tudo começa com uma citação do libreto da ópera Turandot de Puccini para falar da esperança. Em seguida, vêm algumas reflexões breves sob a rubrica "A arte e a criatividade". A música entre elas. "Em música, amo Mozart, obviamente". E a Missa em Dó da qual ele fala é, muito provavelmente, a Missa da Coroação de 1779. Há outras missas em dó maior entre as 16 de Mozart, mas essa é a mais amada e é de amar Mozart que o Papa fala.
Mozart continua na memória papal e a intérprete favorita é a pianista Clara Haskil, assim como em Beethoven o intérprete "mais prometeico" é o regente Furtwängler. Há aí um mote - os intérpretes são os da antiga. Numa psicologia rápida, feita a machado mesmo, isto pode significar que o Papa cristalizou os seus gostos ali por volta dos 1950 ou 1960, o que está muito bem. Fosse musicólogo e o dever da atualização seria um imperativo. Esse não é o caso. Todos temos os nossos gostos imutáveis, alguns deles plantados firmemente no passado. Que o Papa Francisco individualize Furtwängler também em relação a Wagner, puxando uma gravação de alta estima que é a do Anel do Nibelungo feita em 1950 é prova disso.
Ele e eu concordamos nas duas outras menções à música nessa longa entrevista. Sim, o Parsifal de Wagner registrado pelo regente Hans Knappertsbusch em 1962 - no festival de Bayreuth, ainda por cima - é mesmo insuperável (diz o Papa: "para mim é a melhor coisa"). E, em Bach, não há dúvida que a ária Erbarme Dich ("Tem piedade de mim") é mesmo "sublime". Mesmo que esteja colocada mais para o início da Paixão Segundo São Mateus, essa ária de arrependimento é um dos focos da peça e uma das melhores expressões do barroco em música. Mas há, aí, uma ironia. Pois não é que o papa Francisco tem entre suas poucas preferências musicais declaradas uma das peças máximas da música religiosa... luterana? Música para ser tocada e cantada em São Tomás de Leipzig e não em São Pedro de Roma? Pense o leitor o que Gregório XIII, autêntico Papa da contrarreforma, haveria de dizer se soubesse disso. Mas hoje, parece dizer Francisco, música é apenas música. Cisões à parte. Memórias e afetos para diante.