Em Medeia Vozes, que segue em cartaz de quarta a domingo, na Terreira da Tribo, com ingressos esgotados, o Ói Nóis Aqui Traveiz celebra uma estética política e uma política estética plasmadas em 35 anos. Para quem é da minha geração e acompanhou apenas os últimos 10 ou 12 anos, é estranho pensar no Ói Nóis como arauto da postura agressiva com a qual foi associado nos primeiros tempos. O grupo é, acima de tudo, signo de acolhimento, por mais que alguns momentos nesta peça nos provoquem sensação de insegurança.
Experimentamos a hospitalidade na maneira como os atuadores se relacionam com os espectadores, respeitando seu espaço, mas convidando-os a estar dentro da cena. Isso aparece no ritual de primavera, em que um grupo de atuadoras oferece pão e frutas secas, sempre olhando nos olhos. O teatro de vivência do Ói Nóis é uma obra de arte total em um sentido que Wagner jamais imaginaria.
Baseada no romance homônimo de 1996 da escritora alemã Christa Wolf, Medeia Vozes é uma releitura revolucionária da tragédia de Eurípides. Nesta versão, a personagem - brilhantemente vivida por Tânia Farias - não comete assassinatos. A feiticeira movida pelo ciúme ou pela honra retratada pelo tragediógrafo grego dá lugar a uma ativista em busca de justiça social. Ao tentar desenterrar os esqueletos que fundam o reino de Corinto, é perseguida pelo poder instituído. Não é uma peça sobre como o poder patriarcal acabou com a vida de uma mulher. É sobre como esse poder acabou com uma ideia de civilização.
Mais uma vez, o Ói Nóis não está falando de um mito que ficou no passado. Medeia ecoa as mulheres que sofrem mutilações genitais na África, estrupros sistemáticos na Índia e violência doméstica no Brasil. Essa atualidade é sublinhada pela inserção de depoimentos contemporâneos em meio à trama, esta contada de forma não cronológica. A própria Medeia se desdobra em muitas: há a Medeia lírica da primeira cena, a Medeia irônica que questiona Jasão (Eugênio Barboza), a Medeia corajosa que desafia Acamante (Paulo Flores) e, por fim, a Medeia exilada. Essa dramaturgia sofisticada, que opera em uma estrutura que tem algo de onírico, pode dificultar o entendimento de quem não está familiarizado com a história.
A estrutura cênica funciona de forma parecida com os espetáculos de teatro de vivência apresentados nos anos recentes. A complexa cenografia, que ocupa diversos ambientes da Terreira da Tribo, é impressionante, mas não tanto quanto os figurinos.
Já a performance é fresca, como se fosse a primeira vez, e intensa, como se fosse a última (isso lembra um manifesto divulgado por eles no início dos anos 1980 segundo o qual "é necessário atuar como se fosse a última vez que tivesse algo a comunicar aos demais"). Aqui está um espetáculo ao qual você não hesita em conceder cinco estrelas.
Ao final, como de costume, o grupo não retorna para receber os aplausos. A imagem de Medeia vagando pela Rua Santos Dumont, onde fica a Terreira, reverbera na mente dos espectadores como um alerta de que é preciso fazer algo. E rápido.
MEDEIA VOZES
> De quarta a domingo, às 19h30. Até 22/9.
> Terreira da Tribo (Santos Dumont, 1.186), fone (51) 3286-5720, em Porto Alegre.
> Ingressos esgotados.