Fosse esta uma cinebiografia convencional, dirigida por um cineasta ao estilo, digamos, do americano de origem judia Steven Spielberg, é provável que Hannah Arendt fosse apenas mais um drama de tribunal, daqueles que se esforçam para apresentar o confronto entre bem e mal absolutos. É possível que outro diretor carregasse nas tintas recriando cenas do Holocausto ou apimentando o romance da jovem Arendt com o mestre Martin Heidegger - um dos mais importantes filósofos do século 20, mas também um dos muitos simpatizantes do nazismo da Alemanha dos anos 1930.
Na mão da diretora Margarethe Von Trotta, porém, a vida de Hannah Arendt (1906 -1975) tornou-se apenas um pretexto para reflexões que ultrapassam uma biografia e mesmo os fatos históricos, por mais trágicos e extremos que eles sejam. Hannah Arendt é um filme de ideias, menos do que de ação - o que pode incomodar espectadores mais inquietos.
Barbara Sukowa, com quem Von Trotta já havia trabalhado em outra cinebiografia, Rosa Luxemburgo (1986), interpreta o papel da filósofa de origem judia que se oferece para cobrir para a revista New Yorker o julgamento, em Israel, do burocrata nazista Adolf Eichmann (sequestrado em Buenos Aires pela Mossad em 1960 e enforcado em Jerusalém em 1962). Na primeira parte do filme, quando Arendt está em Israel cobrindo o julgamento, o conflito que se coloca é a legitimidade de um tribunal que, no lugar de julgar Eichmann e suas ações, acaba julgando o nazismo, oferecendo uma espécie de teatro de justiça que apenas aparentemente seguia as regras de um tribunal comum - já que todos sabiam que o réu já estava previamente condenado. Cenas em preto e branco do julgamento real emprestam força e dramaticidade à reconstituição ficcional.
Na segunda parte, depois da publicação do primeiro dos cinco artigos que seriam reunidos no livro Eichmann em Jerusalém - Um Relato sobre a Banalidade do Mal, o confronto é entre a consciência de Arendt e aquilo que os outros esperavam dela. No lugar de apontar o réu como uma aberração moral, Arendt criticou atitudes de lideranças judias durante a guerra - o que foi considerado imperdoável - e aproveitou o caráter pífio de Eichmann para fazer uma reflexão profunda e original sobre a essência dos atos mais radicais de violência: Eichmann não era um monstro, mas um burocrata que simplesmente escolheu não pensar sobre o que fazia.
O filme, que começa e termina com a filósofa recostada em um divã, refletindo, acaba sendo um grande elogio do pensamento crítico - aquilo que nos permite distinguir o que é certo do que é errado. Porque é isso que nos torna verdadeiramente humanos, além de ser, talvez, nossa única chance de impedir que tragédias como o Holocausto voltem a acontecer.
Hannah Arendt
De Margarethe Von Trotta. Com Barbara Sukowa e Axel Milberg.
Drama, Alemanha/França/Luxemburgo.
Duração: 113 minutos.
Classificação: 12 anos.
Em cartaz no Itaú 8, Instituto NT e Moinhos 3
Cotação: 4, de 5 estrelas