Dado o impacto radical de seu trabalho, é fácil esquecer que Vincent van Gogh (1853 - 1890) dedicou menos de uma década de sua breve vida à arte como profissão.
A recuperação minuciosa de sua formação e de sua trajetória como um homem perseguido pelo insucesso em praticamente tudo ocupa a maior parte das mil páginas de Van Gogh: A Vida, a mais recente biografia do mestre holandês, escrita por Steven Naifeh e Gregory White Smith.
Os autores se basearam em 10 anos de extensas pesquisas, incluindo a totalidade das cartas escritas por Van Gogh, um missivista compulsivo. Naifeh e White Smith recuperam da infância de Van Gogh, em Zundert, na Holanda, onde o pai era pastor, até seus insucessos como aprendiz de negociante de arte (empregado por um tio, foi constantemente remanejado nas filiais da empresa até ser demitido após sete anos) e como religioso (estudou teologia em Amsterdã, mas, impaciente, largou tudo para ser missionário em um distrito mineiro na Bélgica).
Van Gogh chegou às vésperas dos 30 anos sem emprego e dependendo dos pais, situação vexatória para a sólida moral protestante da família. Só aí aceitou a sugestão do irmão mais novo, Theo, para fazer uma tentativa de transformar em meio de vida o pendor que tinha para o desenho. Ganha corpo então, na narrativa, a febril correspondência entre Vincent e Theo, que havia se tornado o negociante de artes bem-sucedido que o primogênito fracassara em ser. Theo sustentou Vincent por anos, em uma ciranda de atrito e dependência, mostrada no livro como resultado da teimosia e do egoísmo de Vincent.
O ponto mais polêmico desta nova biografia é a versão para a morte de Van Gogh. Cristalizada no mais famoso relato da vida do artista, o romanceado A Vida Trágica de Van Gogh, publicado por Irving Stone em 1934, a versão de que o artista se matou vinha sendo aceita quase sem contestação até hoje. No dia 27 de julho de 1890, Van Gogh teria saído da estalagem em que estava hospedado em Auvers-sur-Oise, uma comuna situada a 27 quilômetros a noroeste de Paris, e se dirigido para um campo de trigo, munido de cavalete, tintas e telas, para trabalhar em uma nova pintura. Cena comum: numa atividade frenética, Van Gogh fez 70 pinturas a óleo no período de menos de dois meses em que morou no local. Só que, nesse dia, ele teria tentado se suicidar com um tiro no abdômen. Teria, então, voltado a pé até a estalagem, para buscar socorro médico, que se mostrou inútil. Van Gogh agonizou até a madrugada do dia 29, quando enfim morreu, aos 37 anos.
Naifeh e White Smith apresentam a hipótese de que Van Gogh teria sido baleado acidentalmente por um adolescente encrenqueiro chamado René Secretan. Na época do centenário de Van Gogh, nos anos 1950, Secretan, então um octogenário homem de negócios, admitiu liderar um grupo de moleques da vizinhança que se divertiam pregando peças pesadas em Vincent. Fascinado pelo mundo dos cowboys americanos, o rapaz andava para todo lado com uma arma - emprestada ou vendida pelo dono da estalagem em que Vincent morava. Filho de uma respeitável família burguesa da cidade, teria, com a ajuda do irmão, dado sumiço a todo o material de Vincent para acobertar o incidente - nunca foram encontrados nem a arma do crime nem o material de pintura.
Embora interessante como exercício de montagem, a versão dos biógrafos, detalhada nos capítulos finais da obra, não encontra respaldo em evidências concretas - o próprio Van Gogh, nas horas seguintes ao disparo, declarou ter atirado em si mesmo e não denunciou seus supostos assassinos. Esse silêncio é atribuído pelos biógrafos a um "desejo de martírio" manifesto já durante sua temporada como pregador entre os mineiros belgas. O que casa com uma faceta do artista retratada na obra, mas lança desconfiança sobre outra. O Van Gogh egoísta e desesperado por reconhecimento pintado por eles teria arranjado um modo de revelar seu supremo sacrifício. Mostrando que, para um enigma de tantos rostos diversos como Van Gogh, mesmo um livro de mil páginas pode deixar lacunas imperdoáveis.
Van Gogh: a Vida
De Steven Naifeh e Gregory White Smith. Biografia, tradução de Denise Bottmann, Companhia das Letras, 1.028 páginas, R$ 79,50.