Juntamente com o ator João Miguel, o diretor Cao Hamburger esteve em Porto Alegre para a sessão de abertura do 8º Festival de Verão, em março. Foi a segunda exibição de Xingu em território nacional - a primeira havia sido no 8º Amazonas Film Festival, antes da apresentação do longa no Festival de Berlim, em fevereiro.
De volta a São Paulo, com mais calma, atendeu à ligação de ZH e comentou as dificuldades da produção, algumas escolhas autorais, a recepção do filme na Berlinale e a relação com a família Villas-Bôas, com quem, afirma, o "nível de confiança alcançado foi raríssimo".
Zero Hora - Como foi o contato com os índios e a natureza que os envolve?
Cao Hamburger - A imagem dos irmãos Villas-Bôas entrando na expedição rumo ao Xingu e se encantando com o que encontraram serve para ilustrar o que aconteceu com a gente. Toda a equipe ficou encantada com o que encontrou, com a descoberta de algo que, no fundo, desconhecíamos. O Brasil, a rigor, desconhece a questão e o modo de vida das tribos do Xingu. Não é que conheçamos superficialmente: não temos noção do quanto o estilo de vida daqueles índios é sofisticado. Eles vivem numa harmonia com o seu contexto que nada tem a ver com o nosso conceito de civilização; é algo baseado em outros parâmetros, mas que me parece muito mais avançado. Eles podem não ter o avanço tecnológico e científico que temos nas cidades, entretanto, criam adultos bem mais equilibrados, que sabem lidar melhor com os problemas, ou seja, não estamos falando só de harmonia com a natureza, mas de educação.
ZH - De que estrutura vocês dispuseram para as filmagens? É notável a qualidade técnica de som e imagem do filme - como ela foi alcançada filmando em locais mais remotos?
Cao - O que ocorre é que o cinema brasileiro atingiu um bom patamar de qualidade técnica. Dispomos de profissionais bons em todas as áreas, e profissionais que sabem trabalhar com recursos limitados. Aqui também posso dizer que aprendemos com as lições dos índios e dos próprios Villas-Bôas: trabalhamos controlando os recursos que tivemos à disposição, geralmente estando com a cabeça aberta ao improviso no que diz respeito a posicionamento de câmera e interação dos atores principais com os figurantes. Alguns planos foram totalmente desconstruídos e reconstruídos na hora de rodar. Alcançamos este bom patamar de qualidade técnica, no cinema brasileiro, buscando a criatividade nessas condições, né?
ZH - Por que você trouxe o Cláudio (João Miguel) para o protagonismo, e não o Orlando (Felipe Camargo), já que era este último o mais conhecido dos irmãos, aquele que ia a Brasília e fazia as articulações políticas?
Cao - Achei mais estimulante falar de um personagem menos conhecido, parece-me que a ideia de descoberta que o filme carrega fica mais forte assim. Além disso, os dramas vivenciados pelos três irmãos estavam melhor resumidas no Cláudio. O Orlando tinha o dom da comunicação, da oratória, da articulação política. O Cláudio, mais introspectivo, tinha mais poder de concentração e possuía uma força de realização das coisas que era impressionante. Não sei até que ponto isso era admiração minha por ele, mas me senti mais próximo do Cláudio.
ZH - O quanto os familiares deles participaram do projeto e interferiram no filme?
Cao - Foi o Noel, filho do Orlando, quem sugeriu que fizéssemos Xingu. Você vê o quanto tivemos liberdade a partir da escolha de trazer o Cláudio para o protagonismo mesmo que a ideia do filme tenha partido de outro núcleo familiar. O nível de confiança que alcançamos, equipe e familiares, foi raríssimo. Exigi, como condição para a realização, não mostrar nada para a família antes do longa ficar pronto, e fui atendido pelos Villas-Bôas, que mesmo assim não negaram acesso a nenhum documento da família. Os familiares só viram Xingu agora em março, para você ter uma ideia.
ZH - No Festival de Berlim a recepção do filme foi boa, tanto que ele foi o terceiro na votação popular em meio aos mais de 30 longas da mostra Panorama. Mas que tipo de interesse o tema despertou na Europa?
Cao - A recepção, na Alemanha e no Brasil, é parecida. Primeiro as pessoas parecem descobrir algo que desconheciam. Depois, revelam interesse pelo tema, como se percebessem estar diante de uma questão - a dos territórios indígenas - que segue urgente mesmo 50 anos depois da criação de Xingu. Isso é importante: a questão abordada no filme não acabou. Ela ainda está em aberto, porque os crimes contra os índios seguem existindo e os conflitos por terra também. Quanto mais se falar nisso, mais chance há de se alcançar a conscientização de todos.
Confira o trailer de Xingu