Dois anos após trocar de editora e publicar o romance O Seminarista, Rubem Fonseca está de volta às livrarias com dois livros de propostas distintas. As Axilas e Outras Histórias Indecorosas é uma coletânea de 18 histórias curtas, gênero no qual Fonseca é reverenciado como mestre e que ajudou a elevar a um novo patamar. José é um breve livro de memórias. Nos textos abaixo, os jornalistas de Zero Hora Ticiano Osório e Carlos André Moreira escrevem, respectivamente, sobre os contos e as memórias do escritor:
O Escritor mais Imitado
TICIANO OSÓRIO
Rubem Fonseca é o mais imitado escritor brasileiro. É imitado até por ele próprio. A enorme influência de Rubem, 86 anos, na formação de outros autores pode ser comparada à de Philip Roth, 78 - com a diferença brutal de que o americano de Newark ainda hoje assombra, enquanto esse carioca por adoção é uma sombra de seu passado.
Um passado que iluminou a literatura brasileira com volumes de contos como Os Prisioneiros (sua estreia, em 1963) e o seminal Feliz Ano Novo (1975), pela mistura de barbárie e erudição,linguagem chula e citações cultas,humor ácido e crítica social. Mas qual foi o último grande Rubem Fonseca? Já vai tempo, e o posto não será de Axilas e Outras Histórias Indecorosas (Nova Fronteira, 208 páginas, R$ 39,90), ainda que se garimpe um punhado de joias entre suas 18 histórias.
O livro começa com o pé direito: Sapatos, narrado por um cara que arranja serviço de porteiro graças aos calçados que sua mãe, empregada de ricaço, lhe conseguiu, tem prosa escorreita e desfecho inesperado.Mas não é um cartão de visitas correto: não há homicídio, ao contrário do que se verá já a partir da segunda história - ao longo de 12 contos, 22 assassinatos são descritos ou sugeridos. O brabo é que Rubem acerta mais a mão quando mira em outra direção - se destacam ainda Gordos e Magros, sobre um obeso que se apaixona pela cliente de uma chocolateria,e A Mulher do CEO,sobre um executivo que se apaixona...pela mulher do CEO, obviamente.
Não é que as narrativas mais criminais deixem de provocar impacto - Axilas, por exemplo, já se inicia com uma divertida e impublicável digressão sobre as partes do corpo feminino mais atraentes; Confiteor e O Misantropo têm uma escalada de agressões irresistível. Mas, no conjunto, esses contos, quase todos protagonizados por misantropos, parecem um xerox de Rubem Fonseca, uma mistura de erudição enfadonha e violência previsível. O autor até se repete: em Paixão, uma personagem diz:"A coisa que mais acaba com o amor é duas pessoas viverem juntas". Em Confiteor, o narrador ecoa:"A coisa que mais acaba com o amor é o fato de os amantes morarem juntos". Sem condescendência - que essa palavra nem existe no dicionário de seus personagens -, dá para dizer: se você procura diários de homens que, mais do que se adaptar à sociedade,tentam adaptar a sociedade a eles,vai encontrar mais profundidade, sarcasmo, surpresa e contundência nos gibis do Justiceiro escritos por Garth Ennis e nos episódios do seriado Dexter.
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Voz rascante para memórias suaves
CARLOS ANDRÉ MOREIRA
Ao longo de quase 50 anos de carreira, Rubem Fonseca construiu uma voz personalíssima: seca, rascante, direta, muitas vezes ausente de qualquer emoção, que flerta com algumas construções arcaicas e termos obscuros ou técnicos. Não deixa de ser um dos grandes atrativos de José, conferir como essa voz se aplica ao território sentimental por excelência da memória. A resposta é: muito bem. Aplicando ao terreno do passado um tom cru e digressivo, expresso em frases curtas, e tratando a si mesmo na terceira pessoa, Fonseca dribla o recorrente pecado de autobiografias: um exagerado sentimentalismo que descamba ora para a complacência do "livro de panegíricos", para usar o título de um conto seu, ora para o francamente piegas.
José (Nova Fronteira, 160 páginas, R$ 36,90) entrega exatamente o que o título promete. Não são as memórias do escritor Rubem Fonseca, e sim do menino e rapaz José (prenome do autor) - as recordações se interrompem antes do personagem, já formado advogado e criminalista promissor, fazer 30 anos. Rubem vai contrariar o futuro
daquele José para se reinventar como um dos grandes autores nacionais - e isso,em seu entender, é outra história.
Nascido em Juiz de Fora (MG), filho de um casal de portugueses, o garoto José vive de modo privilegiado até que o pai, comerciante varejista, precisa encerrar o negócio para honrar os compromissos com credores,e a família, abruptamente empobrecida, se transfere para o Rio. Com a mudança, José descobre a Capital Federal dos anos 1930 e 1940, pela qual caminha obsessivamente - caminhar continuaria sendo um hábito que Rubem levaria por toda a vida, e que marcaria personagens de contos como Fevereiro ou Março e A Arte de Andar pelas Ruas do Rio de Janeiro. Ele escreve:"Naquela cidade,no Rio de Janeiro, José descobriu a carne, os ossos, o gesto, a índole das pessoas; e os prédios tinham forma, peso e história".
Mais que um livro de memórias, José é um catálogo de afetos, recuperando o nascimento de outras paixões que acompanhariam Rubem: os livros (o autor teria aprendido a ler sozinho, aos quatro anos), as mulheres (José dá o testemunho dos primeiros fascínios com o feminino), o Carnaval (especialmente o de rua, cujo fim ele deplora). Memórias entremeadas com digressões sobre monarquia, história portuguesa, Elias Canetti, Amos Oz - porque José ainda é Rubem Fonseca.