Em 1993, o melhor asfalto do Partenon era o da Travessa Guedes da Luz. Novo, lisinho, pouco movimentado e com uma lombinha ideal para quem queria aprender a andar de skate. Não demorou para que se tornasse ponto de encontro de jovens que, além de se interessarem pelo esporte, dividiam outras afinidades — três deles, por exemplo, tinham em comum a paixão pela cultura hip hop, que ainda buscava o seu espaço. Em agosto daquele mesmo ano, esses amigos decidiram começar a se expressar rascunhando alguns versos no papel. E desse gesto quase despretensioso nascia o Da Guedes, o grupo de rap mais proeminente do Rio Grande do Sul.
— A gente procurava estilos de fora e, quando nos demos conta do hip hop, percebemos que a gente já via isso o tempo todo. Vários caras já tocavam com vinil, animavam festas, tínhamos precursores. E era o som que estava dentro da periferia, vindo da black music. O rap deu nome para o que já rolava, e a gente conseguiu fazer a transição, levando também para fora do gueto — diz Nitro Di, 46 anos, que formou o Da Guedes ao lado de Baze, 49, e DJ Deeley, 49.
Exposto à cultura estadunidense que chegava ao país, principalmente, pelo canal MTV, o trio decidiu que deveria abraçar o inglês em sua identidade e, por isso, se autobatizou de S of G, que significava Sons of Guedes — "filhos da Guedes", na tradução, fazendo referência à travessa onde tudo começou. Mais tarde, passaram a utilizar o nome em português, mas, orientados pelo produtor musical Carlos Eduardo Miranda, que os conduzia para o seu primeiro trabalho em estúdio, o disco Cinco Elementos (1999, Trama), assumiram-se apenas como Da Guedes.
Neste mês de celebração aos 30 anos de serviços prestados ao hip hop, o Da Guedes recebeu a reportagem de GZH para uma conversa sobre passado, presente e futuro. O ponto de encontro inicial foi no "laboratório" de Nitro Di, que fica na casa do músico. Ali, em um espaço isolado acusticamente e com uma belíssima vista para o bairro Partenon, de onde os artistas são crias, misturam-se os elementos que fizeram parte destas três décadas de existência do grupo: desde um aparelho de som vindo diretamente dos anos 1990, passando por um cartaz do começo da carreira dos músicos até um computador com programas atuais para mixar e produzir os seus sons independentemente, deixando os perrengues de antes para trás.
— Em 1993, estávamos fazendo som na rua e escrevendo, mas as bases eram pré-gravadas e estavam disponíveis só em vinil. No Centro, só tinha uma loja que vendia, que era a Pop Som, além de alguns outros caras que conseguiam trazer de São Paulo. A gente ia semanalmente na loja para conseguir pegar o instrumental antes dos outros, porque eram os mesmos vinis para todo mundo. Quem pegava primeiro fazia o seu hit. Mas, depois, nos festivais, a gente ia tocar e tinha várias bandas com o mesmo instrumental — recorda Nitro Di.
— As letras eram diferentes, mas as bases eram tudo igual (risos). Quatro, cinco grupos cantando em cima do mesmo instrumental — complementa DJ Deeley.
Mesmo assim, o trio conseguiu se destacar o suficiente para virar referência no Estado e ser projetado para o Brasil inteiro — claro, sempre relembrando a rede de apoio que teve, como Tonho Crocco, os artistas do Planet Hemp, DJ Hum, Thaíde, entre vários outros. Aproveitando as oportunidades conquistadas, depois de Cinco Elementos, o Da Guedes entregou o seu segundo álbum, desta vez pela Orbeat Music, que foi o seu maior sucesso até hoje. Morro Seco mas Não me Entrego (2002) enfileirou hits como Bem Nessa, Passe Livre e o fenômeno pop Dr. Destino, que caiu na boca do povo. Dois anos depois, eles ainda lançaram DG vs a Luz Falsa que Hipnotiza o Bobo, pela mesma gravadora, consolidando os artistas e elevando também os nomes de outros rappers que passaram pelo grupo, como Gibbs e Negro X.
O sucesso Dr. Destino, por sinal, tentava alertar para os malefícios dos excessos de drogas e do álcool, bem como do sexo sem proteção, sendo uma campanha em prol da vida em forma de rap. Infelizmente, recorda DJ Deeley, alguns dos atores que participaram da gravação do videoclipe — que teve locações, inclusive, na Guedes da Luz e foi dirigido por Mauricio Eça, que realizou Diário de um Detento, do Racionais MC's — acabaram tendo o mesmo desfecho que seus personagens da produção, morrendo baleados ou definhando com o consumo desenfreado de entorpecentes.
— Vários caras que começaram com nós, andando de skate, depois sumiram, se perderam. Não entenderam o que a gente queria dizer — detalha o músico.
Projeção
Nesta mesma época, o grupo nascido no Partenon alçou voos ainda maiores e deixou as terras brasileiras. Em 2004, tocaram em Sanary-sur-Mer, na França, em um festival organizado por Antonio Villeroy. Naquele mesmo ano, consagravam-se como melhor grupo de rap do país, recebendo o Prêmio Hutúz. Estavam no auge. Já em 2006, durante a Copa do Mundo da Alemanha, o Da Guedes foi para o país europeu se apresentar em três cidades, dentro do projeto Copa da Cultura, do Ministério da Cultura. A palavra estava espalhada mundo afora.
É claro que, dentro de casa, também havia reconhecimento. No mesmo 2004, por exemplo, o grupo foi convidado para se apresentar no palco principal do Planeta Atlântida e, para a surpresa dos músicos, os milhares de participantes do evento levantaram a mão para o alto e cantaram as músicas em coro, reforçando a popularidade dos rappers. E, neste dia, curiosamente, o "Dr. Destino" agiu e fez com que os artistas "invadissem" as casas dos brasileiros em horário nobre.
— Era para a gente entrar no Planeta às 18h30min e sair às 19h30min, para trocarem o palco e entrar o Skank, que ia aparecer ao vivo no Jornal Nacional. Atrasou isso, atrasou aquilo, a gente entrou no palco e faltou luz. Quando bateu 20h30min, entrou ao vivo no Jornal Nacional e era o Da Guedes tocando. A galera do Brasil inteiro viu a gente no palco principal do Planeta Atlântida no Jornal Nacional (risos) — recorda Baze.
— Imagino o William Bonner: "Estamos aqui, ao vivo, com... quem?" — brinca Nitro Di, que chegou a deixar o grupo em 2002, para seguir carreira solo, mas retornou em 2012.
Referência
Atravessando gerações, o trio Da Guedes consegue fazer a ligação com quem veio antes e com quem surgiu depois, tendo uma visão ampla do cenário do rap gaúcho como um todo. E, para eles, mesmo com alguns artistas que vieram depois conseguindo fazer sucesso, ainda falta uma conexão com o passado, com as ruas.
— Hoje em dia, a gurizada muitas vezes nem sabe fazer direito o ao vivo, porque a carreira está toda online. A gente era de chegar, colar, trocar ideia com as pessoas, ir aos eventos. O rap na rua, tá ligado? É o que falta hoje — salienta Nitro Di.
A declaração do artista, inclusive, já é opinião do grupo há décadas. "Hip hop criado na rua, essa é minha cultura/ Rimando com a palavra certa, falando a verdade aberta/ Pode acreditar", cantaram eles ao lado de Paula Lima na música Minha Cultura, que faz parte de Cinco Elementos. Para eles, a música tem que vir da comunidade e falar das mazelas da sociedade, ajudando a clarear a realidade das pessoas que vivem na periferia.
E enquanto esperam surgir um "novo Da Guedes", os músicos seguem na atividade. Para as celebrações de 30 anos, o grupo será homenageado no Rap in Cena com a Rua Da Guedes, fazendo a ligação entre o palco principal e um espaço dedicado aos artistas dos anos 1990. Durante o evento, que ocorre nos dias 28 e 29 de outubro, em Porto Alegre, Nitro Di, Baze e DJ Deeley emplacarão um show que recupera a trajetória do grupo, com convidados.
Além disso, um show inédito, gravado durante a pandemia no aniversário do Bar Opinião, será disponibilizado no canal do Da Guedes no YouTube nos próximos meses e, também, três músicas novas deverão ser lançadas até o final do ano.
— Para o ano que vem, vamos tentar coisas maiores, participando de editais. As comemorações de 30 anos vão se estender até agosto de 2024. Será um ano de celebração — avisa Baze.
— Estamos focando agora para a frente, querendo que o grupo crie coisas novas — reforça Nitro Di.
Então, como eles mesmos cantam há anos, "o Da Guedes tá aí e não para, não!".