Chegou o dia de conhecer o álbum McCartney III, que Paul McCartney preparou carinhosamente sozinho, assim como havia feito com os álbuns McCartney (1970) e McCartney II (1980). Em cada ano desses, ele se distanciou de algo - em 1970, dos Beatles; em 1980, dos Wings, e em 2020, de todo o mundo, como todos tiveram que fazer.
A trilogia seria fechada no último dia 11, mas os produtores pediram mais um tempo para o projeto sair como queriam, com faixas bônus em versões paralelas do disco, e o lançamento ficou para esta sexta-feira (18). O problema foi que, ao pedir mais tempo, McCartney também deu chance aos piratas da web, que conseguiram fazer o disco vazar (ou a alguém de sua equipe o traiu).
O disco é ótimo, inspirado e traz todos os Pauls, o do violão, o do piano, o das canções de ninar e dos rocks de despertar. Seize The Day é um rock and roll desses vigorosos, mas dóceis, a porção de equilíbrio à aspereza de Lennon que Paul sacou logo, sofisticou e levou para a vida. Seu peso não precisou de revolta, algo que ele nunca teve, e seu rock and roll, por mais alto que sua voz chegou em Helter Skelter, não precisou da raiva. Seize the Day, que nada tem a ver com Helter Skelter, segue um pensamento de composição que Paul passou a usar quando se viu com mais recursos de estúdio, a partir do final dos anos de 1990. Melódico e de segunda parte - desculpe, não tem outra palavra - deliciosa.
Pretty Boys é o Paul das cordas de aço. O que se senta com um violão e resolve uma ideia em poucos acordes, cantarolando a primeira melodia que vem sem lapidá-la tanto desde que, em algum momento, ela leve a um crescente hipnótico poderoso.
Lavatory Lil tem um peso maior, mais anos 1970, e traz um solo de guitarra de dedos duros para uma canção que fala de uma Lil, a personificação de uma garota que Paul não gosta e que, conforme disse em uma entrevista, jamais vai revelar quem é. Aliás, Paul toca tudo no disco e aqui pode estar seu calcanhar de Aquiles. Nenhuma execução instrumental é excepcional. Mas era só o que faltava, Paul ser um músico virtuoso.
De todos os Paul instrumentistas, e o mundo pareceu ruir quando ele fez aquele álbum em 1980 dizendo que havia tocado todos os instrumentos (pela complexidade, o de 1970 parece ter sido mais fácil), o Paul baixista não investe mais nas linhas que ele tanto criou para os Beatles. Seu baixo ficou mais reto, mais linear, menos barroco. E isso não é de hoje. Mas ele segue com uma harmonia de toques surpresa em todas elas, Deep Down, Slidin, Winter Bird... Winter Comes, Find My Way, Deep Deep Feeling e Long Tailed Bird.
É bom ouvir bem e muitas vezes a pequena The Kiss Of Venus. É de sua pequenez que saiu tudo o que Paul fez pela vida, seguindo a estrutura das canções de ninar. Sua ideia inicial é sempre assim, como se ele fizesse sempre uma música para um filho dormir. Depois que o fio da melodia surge, ele o puxa e a desenvolve até levá-la à condição de grande canção ou deixá-la pequena mesmo. Sempre dá certo. Umas viram rock, outras seguem sendo canções de ninar.
E tem ainda Woman and Wives, que lembra o grave da voz e o drama da alma de Johnny Cash. Triste, bela e solitária, mais ou menos assim. "Muitas escolhas a fazer / Muitas correntes para desenredar / Cada caminho que tomamos / Torna a viagem mais difícil / O riso se transformou em tristeza / Não me deixe triste / Perseguindo o amanhã."
A terceira solidão de Paul McCartney o pegou bem resolvido com a própria história. Em seu primeiro isolamento, em 1970, quando fez McCartney, ele via apático os Beatles ruírem mesmo depois de todos os seus esforços. Na segunda, em 1980, ano de McCartney II, via ruírem os Wings. Agora, em 2020, ao lado de Nancy Shevell desde 2011 e paizão de Stella, Beatrice, James, Heather e Mary McCartney, não tem nada que queira além de ser ele mesmo.
Questionado em entrevista em 2019 sobre "qual o melhor dia de sua vida, aquele que você voltaria para viver de novo?", ele respondeu:
— O dia mais feliz da minha vida? Hoje. Eu sou um homem feliz.