Ao ser questionado pela reportagem de GaúchaZH sobre o que mudou em seu dia a dia agora que tem 60 anos, completados em fevereiro, Zeca Pagodinho não titubeia:
— Ah, rapaz, muito exame! Operar olho, operar nariz... Algumas coisas têm que mudar. Você vai enxergando menos.
Com seis décadas de vida e encarando muitos exames, o cantor lançou seu novo disco, Mais Feliz, na última terça-feira (17). O trabalho está disponível nas plataformas digitais. No dia, o sambista recebeu a imprensa no seu estabelecimento, o Bar do Zeca, localizado em um shopping na Barra da Tijuca – zona oeste do Rio.
Sentado despojadamente e usando óculos escuros, ele evitou tomar a sua referenciada cervejinha. Um cuidado com a saúde? Ou quem sabe uma maneira de evitar sair por ali e comprar um novo cão (hábito que confessou em entrevista à revista TPM, em 2009)? Ele alegou que estava se guardando para a noite, onde apresentaria um show curto no bar, que contaria com canjas de nomes como Xande de Pilares, Diogo Nogueira e Roberta Sá.
Mais Feliz é também o título da faixa que abre o disco. Trata-se de um samba romântico, sobre um sujeito extremamente empolgado por estar apaixonado (“Sinceramente, amor/ Eu tenho que me beliscar de vez em quando/ Pra ver se é verdade/ Ou estou sonhando”). Mais feliz também representaria o atual momento de Zeca?
— Foi um repertório muito bom nesse. Voltei a compor. Tenho 60 anos. Tenho que estar mais feliz (risos) — pontua.
O processo de criação das canções do disco é a mesma festa de sempre, já registrado no curta-documentário O Jaqueirão do Zeca (2004): o artista convida amigos músicos e compositores para uma feijoada sua casa.
— Rapaziada me visita e rola muita comida e bebida. Cada um canta duas ou três músicas. Dali vou passando, ouvindo, vendo no que o povo se empolgou mais. Vejo que ali está o sucesso — descreve. — Quando acaba, dá saudade. Pô, vou fazer o que agora?
Dedicado à ausência
Tendo composto clássicos como SPC e Bagaço da Laranja, Zeca volta a exibir sua vertente criativa em duas faixas de Mais Feliz, algo que não ocorria desde o disco À Vera, de 2005. Uma das canções é Enquanto Deus Me Proteja, parceria com Moacyr Luz.
— Essa música nasceu no Dia Internacional do Compositor (15 de janeiro). Geralmente, vou ouvindo alguma coisa e escrevendo. Depois até me surpreendo e falo: "Caramba!". Sempre nesse processo já bebi alguma coisa... Acaba que no outro dia nem lembro mais (risos) — relata o sambista.
A outra faixa com participação de Zeca na composição é Nuvens Brancas de Paz, realizada com Marcelinho Moreira e o maior parceiro de Zeca, Arlindo Cruz.
— Cheguei à casa do Arlindo cantando isso aí. Marcelinho também estava lá e queria continuar a música. E a música surgiu e pronto. Eu esqueci dela. Era de madrugada, estava daquele jeito... Mais tarde, Marcelinho me questionou sobre um samba que nós fizemos. Respondi que não lembrava. A sorte era que o Arlindo tinha gravado essa música. Pedi para o filho do Arlindo, que mandou pra mim — lembra.
Conforme Zeca, o dia da criação de Nuvens Brancas de Paz foi a última vez que esteve com Arlindo. O sambista sofreu um AVC em março de 2017 e esteve internado em hospital até julho de 2018. Desde então, ele continua o tratamento em casa para recuperar a fala e os movimentos. Zeca dedicou o disco Mais Feliz a Arlindo.
— É a primeira vez que ele não está junto comigo em um disco. Estava sempre presente: como músico, como autor, como um companheiro que orienta. Como um amigo. Bem difícil... por isso dediquei a ele – lamenta.
Zeca admite que até hoje não foi ver Arlindo após o AVC:
— Para mim, é ruim. Há mais de dois anos que não vejo ele. Estava acostumado a visitá-lo, vê-lo sorrindo, tomar cerveja e fazer som. Não quero chegar lá e ver... Tenho fé de que ele vai melhorar. Milagres existem.
Suburbano
Entre as participações especiais de Mais Feliz estão nomes como Xande de Pilares, ex-vocalista do grupo Revelação, no samba romântico Dependente do Amor. Zeca conta com a parceria da cantora Teresa Cristina em O Sol Nascerá (A Sorrir), composição de Cartola e Elton Medeiros, tema de abertura de Bom Sucesso, novela das 19h da TV Globo.
Também há uma versão de Apelo, de Vinicius de Moraes e Baden Powell. Para acompanhá-lo nesta interpretação, o cantor repete a parceria com Hamilton de Holanda no bandolim e Yamandu Costa no violão de sete cordas.
Assim como nos seus outros 18 trabalhos de estúdio, tendo iniciado em seu disco de estreia de 1986, Zeca canta crônicas do subúrbio carioca em sambas de partido-alto, às vezes mais dolente nas faixas que relatam corações partidos (também ambientadas em contextos periféricos). Entre as músicas com cenas suburbanas há Quem Casa Quer Casa, que narra a empreitada de um sujeito a procura de um lar (“Tô procurando um barraco pra alugar/ No puxadinho já não dá mais pra ficar”); Carro do Ovo (“Quem é baixa renda transborda alegria/ Com essa iguaria caindo do céu/ Numa bandeja vem quarenta ovos/ Porém a cartela são só dez reais”) e alegria da chegada do fim de semana com Sexta-Feira (“Graças a Deus sexta-feira chegou/ Tá em cima da hora de largar/ Da minha batalha... Missão cumprida”).
No entanto, Zeca percebe que o subúrbio pitoresco e romantizado de suas músicas tem se transformado nos últimos tempos.
— Há um crescimento desordenado das comunidades, que antigamente se chamavam de favela. Muita criança envolvida. Antes era tudo delimitado: malandro era malandro, e criança era criança. Agora é uma confusão danada. É uma guerra danada que ninguém sabe o porquê — diz.
Na faixa Na Cara da Sociedade, lamenta que a insegurança tenha tomado conta do Rio (“O medo estampado na cara da sociedade/ É o rico, é o pobre, é o mesmo perigo/ É a bala perdida, é a guerra, é o caos”).
— No subúrbio, então, é muito pior. Você não vê ninguém na rua à noite. Parece uma cidade fantasma. Cheia de grade, vazia, com tudo fechado. Muita violência, muito assalto. Está difícil — suspira.
De qualquer maneira, Zeca garante que ainda tem tranquilidade para caminhar por Xerém, bairro de Duque de Caxias (RJ), onde mantém um sítio e uma relação apaixonada com a localidade. Lá ele circula à vontade: vai para o botequim de bermuda, joga sinuca e pode até ser visto pegando ônibus. Em outros lugares, o cantor não tem tanto sossego:
— Sinto falta de poder andar pela rua. Não dá para parar em lugar nenhum que logo aparecem 200 celulares. Aí não dá.