Os músicos da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa) afinam seus instrumentos, mas aquele som característico de início de concerto é quase inaudível: a plateia é formada exclusivamente por crianças de segunda à quarta série que gritam, pulam, brincam. O maestro Evandro Matté saúda o desafiante público e pergunta quem já viu a Ospa – talvez 20 ou 30 estudantes ergam as mãos entre os 600 presentes.
– Olha, até que são vários – comemora Matté.
Embora peça silêncio, o maestro não tem esperanças de obtê-lo. Aliás, em poucos minutos será ele quem estará incentivando as crianças a baterem palmas no ritmo do tema de O Rei Leão. Seu objetivo é mostrar o que é uma orquestra a crianças que, na maioria das vezes, nunca viram uma. Essa aproximação com o público jovem norteia espetáculos específicos da Ospa desde os anos 1950, com nomes como Concertos para a Juventude ou Concertos Legais. Em 2017, já batizados como Concertos Didáticos, os eventos levaram cerca de 2.300 crianças a três apresentações no Salão de Atos da Ufrgs, nos dias 19 e 20 de junho. Foram 57 escolas inscritas, sendo 48 delas públicas.
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Para cativar esse público, cuja prioridade é brincar, a Ospa convida o Cachorro Abelardo para ser o mestre de cerimônias. Trata-se de um fantoche manipulado pelo ator Mário de Ballentti, que trabalhou no programa TV Colosso, da Rede Globo, e fundou a Cia. Caixa do Elefante. Entre piadas, o personagem dá dicas para que as crianças apreciem o repertório:
– A música é uma coisa tão fantástica que se a gente prestar bastante atenção, a gente consegue enxergar imagens. É que nem as trilhas de cinemas, elas nos remetem a imagens incríveis de cenas do filme – introduz Abelardo, dando a dica da primeira música do repertório: – A música do filme faz com que a gente se sinta voando numa vassoura!
– Harry Potter! – adivinha todo o auditório.
Quando o tecladista toca as primeiras notas do tema do filme, escrito por John Williams, a audiência se cala. Uma garotinha loira com um desenho na bochecha abre a boca, pasma, como se estivesse diante do próprio Harry Potter. Por todo o salão, crianças começam a fazer desenhos no ar com as mãos, imitando o maestro. Mikael Santos, oito anos, questiona o gesto:
– Aquilo que ele tá fazendo é uma língua?
– Silêncio, vai começar! – repreende o colega Arthur Feijó, também com oito.
Pensado especialmente para as crianças, o repertório inclui trilhas de O Rei Leão e Piratas do Caribe, temas de desenhos animados, como Looney Tunes, e peças clássicas, como Concertino para Clarinete, de Carl Maria von Weber, e Dança Húngara nº5, de Johannes Brahms. De execução especialmente difícil, O Pedro e o Lobo, de Serguei Prokofiev, é central no espetáculo, pois foi composta com o objetivo de mostrar as sonoridades de cada instrumento. Ao longo da música, Abelardo vai explicando que a flauta representa o passarinho – e as crianças engatam suas mãos como se fossem asas –, o clarinete é o gato andando de mansinho e as trompas são o lobo, "cinzento e assustador!". Quando chega aos tímpanos, que ilustram os tiros de caçadores, o anfitrião finge ser atingido, para delírio da plateia.
Lucas Rian Merque, de oito anos, aponta para o oboé e pergunta:
– Eles deixam a gente tocar nos instrumentos?
Lucas nunca tinha visto um concerto e está encantado com o maior instrumento do palco, o contrabaixo:
– Quero tocar esse aí! Vou conseguir porque sou bem forte.
Mas, como boa parte da plateia, Lucas alterna momentos de fascínio e desinteresse. É uma manhã gelada e assim como há os alunos sonolentos que deslizam nos assentos, há também os atiçados, equilibrando-se na ponta deles. Um grupo de estudantes mais velhos demonstra total indiferença, mas, após o concerto, o maestro revela que não se deixa abalar:
– Você não tem que obrigar ninguém a gostar de nada, mas tem que dar a oportunidade para que tenha acesso. Antigamente a gente tinha o ensino da música específico nas escolas. Isso se perdeu. Nosso objetivo principal é que eles vejam que existe uma outra forma de tocar música que não é aquela que eles veem no cotidiano, na TV aberta.
A professora Cristiane Nunes, da Escola Sylvio Torres, já tinha tentado introduzir Beethoven aos alunos em sala de aula, sem muito sucesso. Agora ela olha feliz para os estudantes atentos ao concerto:
– A gente é de uma escola de periferia. A realidade deles é só o rap. É muito importante eles virem até aqui conhecer outra realidade.
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