A carioca Mart'nália traz a marca do samba já na carteira de identidade: filha de Martinho da Vila e da cantora Anália Mendonça, seu nome é uma palavra que mistura os dois, inventada pelo pai que a levava desde pequena para as rodas na Vila Isabel. Não é de se estranhar, portanto, que, apesar de ter nascido nesse berço sambista esplêndido, a intérprete de 51 anos também goste da variedade e queira cantar em outras freguesias: em seu 11º disco, Mart'nália revela uma personalidade artística plural – que não renega, no entanto, a origem. No recém-lançado + Misturado, a cantora e compositora apresenta oito canções inéditas e sete regravações cuja tônica é uma diversidade que contempla do pop jazz à seresta – sempre mantendo o samba no horizonte, seja de maneira explícita ou apenas insinuada. O ecletismo passa ainda pela decisão de entregar os arranjos e a produção musical a nada menos do que cinco músicos e pela presença de dois convidados especiais: Geraldo Azevedo – cantando com Mart'nália o samba-baião Se Você Disser Adeus, parceria dele com Capinan, escrita especialmente para a artista – e o congolês Lokua Kanza, na versão de sua bela canção Si Tu Pars.
– Conheço o trabalho do Lokua há muito tempo, sou fã. Comecei a prestar atenção nele no disco da Gal Costa em que ele fazia uns vocalises. Escolhi uma música dele para cantar e por acaso ele estava no Rio e gravou para o disco – conta Mart'nália em entrevista por telefone a Zero Hora.
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O álbum, porém, começa com o mais autêntico samba: Mart'nália abre alas com o pai cantando Ninguém Conhece Ninguém, composição de 1976 em que Martinho da Vila lembra: "Não há alguém tão ruim / Que não tenha uma boa qualidade". No miolo de + Misturado, Mart'nália revisita os mestres Gilberto Gil (Estrela) e Caetano Veloso (Tempo de Estio).
– Comecei o disco esperando uma música nova do Caetano, mas ela nunca veio. Então eu sonhei com Tempo de Estio, essa coisa de verão, de liberdade, que já não existe mais com a caretice que está por aí. Lembrei do Marcelo, que cantava essa música nos anos 1980, uma coisa meio andrógina, com o corpo do Ney Matogrosso e o cabelo da Simone – explica Mart'nália.
Outro ídolo lembrado em + Misturado é Djavan: o cantor e compositor está presente tanto com sua obra, na versão de Linha do Equador (parceria com Caetano), quanto pela influência musical – o arranjo da faixa Eu te Quero Agora, de Zé Ricardo, ecoa o suingue de pegada jazzística típico do alagoano. Já o repertório inédito inclui o samba Ouvi Dizer, de Teresa Cristina e Mosquito, e as parcerias de Mart'nália: com Mombaça em Tomara, com Zélia Duncan, Arthur Maia e Ronaldo Barcellos em Libertar (uma bossa dançante com sabor de Marcos Valle) e com André da Mata e Zé Katimba em Vem Cá, Vem Cá... – tema que soa como uma morna cabo-verdiana cantada por Martinho.
A sempre sorridente Mart'nália encerra + Misturado em um tom introspectivo, celebrando Lupicínio Rodrigues (1914–1974) com um belo pot-pourri de dois clássicos da dor-de-cotovelo do compositor porto-alegrense, Ela Disse-me Assim e Loucura, acompanhados apenas do violão de Claudio Jorge e do trompete de Jessé Sadock.
– Faltava contemplar as senhorinhas que vão no meu show. Eu gosto muito de samba-canção, então pensei em fazer uma seresta no disco. Como todas as cantoras já gravaram Lupicínio, tipo Maria Bethânia, Gal, Zizi e Elza, pensei: vou dar a minha gravadinha também. O repertório dele é maravilhoso.
Entrevista
No disco "+ Misturado", você abre mais espaço para outros estilos musicais. Cansou um pouco do samba?
Não dá para cansar, mas fiquei enjoada de fazer a mesma coisa sempre. Nesse projeto que eu fiz com meu pai, o Em Samba! Ao Vivo, fiquei mais de dois anos só cantando as mesmas músicas. Você acaba cantando e se apresentando da mesma forma, e eu sou meio inquieta em relação à música. Foi uma forma de experimentar também.
Você abre o álbum justamente com um samba, Ninguém Conhece Ninguém, mas cuja letra já passa essa ideia de respeitar e valorizar as diferenças.
Nos meus discos de estúdio, sempre busco gravar alguma música do meu pai mais antiga, que ninguém conhece mas na verdade conhece, porque acho que o Martinho é bastante atual, tanto nos versos quanto nas melodias. Achei legal abrir o disco cantando samba com meu pai e logo depois já ir para um outro lado.
Por que você resolveu gravar o disco com cinco arranjadores e produtores musicais?
São músicos fazendo arranjos, a maioria deles baixistas, que tocam o instrumento que eu mais foco para sentir a música. Quis ter essa pegada melódica da black music. O Zé Ricardo trouxe essa linguagem da Banda Black Rio e de Stevie Wonder, do baile. Já o Dadi também trouxe a guitarra rock meio tropicália em Tempo de Estio. O disco mostra as influências que eu tive no meu caminho, músicas que me criaram e pessoas que me deram colo.
Você gravou três parcerias suas no álbum. Está gostando mais de compor?
Compor é chato, a música fica na cabeça por muito tempo. Nem quando a gente grava fica satisfeito com o resultado, parece que ela não termina. Sou meio empurrada pelos parceiros para compor. Faço pedaços de músicas, que guardo no gravador e depois uso. Às vezes sonho com a música inteira.
Você sonha muito com música?
Direto, na maioria dos meus sonhos tem som rolando. Ou eu estou dançando, ou indo para um show, ou para um balé, ou vou para a escola de samba. Nesta época de Carnaval, então, em que eu ensaio na bateria, é o tempo todo "scatum-scatim-scatum" no sonho.