Nos Estados Unidos, é comum ouvir líderes nacionais se referirem à escravidão como o “pecado original”. O termo soa como uma declaração branda, que prende ao passado uma das maiores contradições da nação que em sua declaração de independência, assinada ainda em 1776, fez questão de aludir a verdades evidentes por si mesmas, “que todos os homens são criados iguais”.
Sem direitos inegáveis a vida, liberdade e a procura da felicidade, homens e mulheres negros arrancados a força de seu continente, assim como seus descendentes, foram obrigados a servir a homens brancos até a abolição da escravatura, em 1865. Foram necessários mais cem anos até a Lei dos Direitos Civis de 1964 proibir a discriminação em lugares públicos dos EUA. Tal batalha para construir uma nação justa segue até hoje, como mostram os movimentos antirracistas que varreram o país em 2020.
São as raízes desta injustiça que interessam ao escritor Ta-nehisi Coates em seu romance de estreia, A Dança da Água (Intrínseca, 400 páginas). Ambientado em uma América pré-Guerra Civil (1861—1965), ele traz para o centro da trama Hiram, um jovem com uma memória brilhante, poderes míticos, filho de um senhor de terras, mas inevitavelmente um ser humano escravizado por causa da cor de sua pele na Virgina dos anos 1850.
Ta-nehisi é um escritor proeminente na discussão racial nos Estados Unidos, tendo conquistado em 2015 o National Book Award for Nonfiction por Entre o Mundo e Eu (Editora Objetiva, 152 páginas), em que examina o impacto do passado racista de seu país. Entre outras publicações, ele também assinou as séries de quadrinhos Black Panther: A Nation Under Our Feet Book e Black Panther: World of Wakanda, para a Marvel Comics.
Em A Dança da Água, o autor traz sua visão de mundo para dentro da narrativa. Mais do que isso, já alerta na epígrafe do livro sobre que tipo de história prestes a ser contada, evocando as palavras do abolicionista Frederick Douglass: “Meu papel foi contar o papel do escravo. Para a história do senhor não faltam narradores”.
Ele, então, mergulha na realidade de Hiram, garoto que cresceu com o sonho de tomar o lugar do pai, o senhor de Lockless, no comando da propriedade de tabaco. Não por um desejo de poder, mas para salvar seus irmãos que seguem sendo vendidos e enviados a Natchez. A Virginia, afinal, deixou para trás seus dias de prosperidade, e enquanto o solo desgastado se rende ao efeito da exploração impensada das últimas décadas, os senhores de terra vendem seus escravos discriminadamente para os que vão a Oeste, separando mães, filhos, esposas, maridos, irmãos e primos.
Os planos de Hiram, contudo, são destruídos no momento em que o jovem compreende a atrocidade do mundo ao seu redor. “Penso que é assim que muitas vezes começa a fuga, que fica decido no instante que você entende como é profundo o perigo que corre”, reflete Hi. “Porque não é só que você foi capturado pela escravidão, mas por uma espécie de fraude que pinta seus executores como guardiões do portal que barra a selvageria africana, quando eles mesmos é que são selvagens, que são Mordred, que são o Dragão com roupa de Camelot. E nesse momento de revelação, de entendimento, fugir não é uma ideia, nem mesmo um sonho, mas uma necessidade, como a necessidade de fugir de uma casa em chamas.”
Mas Hiram não possui apenas o desejo da fuga, mas a capacidade de consolidá-la. Retornando aos mitos africanos, Ta-nehisi dá a ele o poder almejado por qualquer escravizado: de em um passe de mágica, escapar para outro lugar. A dança da água, que permite ao protagonista se teletransportar por lagos, rios e oceanos, não é facilmente dominada, e o livro se desenvolve a partir deste mistério.
Liberdade
No meio do caminho entre ele e o mundo livre, também está a Clandestinidade. Trata-se de uma intrincada rede de abolicionistas que mantém uma guerra silenciosa do norte contra o sul dos Estados Unidos, ajudando negros a escaparam das correntes rumo aos estados em que a escravidão já não era permitida.
O realismo mágico permite à Dança da Água transformar um dos maiores símbolos dessa luta em uma figura ainda mais mítica: Harriet Tubman é a verdadeira heroína de Ta-nehisi. Ela também é versada na Condução, como chama o poder de controlar a dança da água, e seus resgates aos escravizados são jornadas pelo inefável. Segundo registros históricos, ela teria ajudado ao menos 300 pessoas a escapar da escravidão, depois de se libertar.
Harriet, que recentemente teve a vida retratada no filme homônimo, não é a única mulher destacada pela narrativa. O escritor faz questão de sublinhar que a opressão age de muitas formas e que o fardo dos negros e o fardo das mulheres é diferente, e o das mulheres negras maior do que ambos. Há ainda o fardo dos trabalhadores explorados, das pessoas às margens a sociedade, das crianças ignoradas. Ao finalmente perceber como os problemas se somam e a dinâmica entre eles, Hiram compreende que a tarefa não é melhorar o mundo, “mas refazê-lo”.
De certa forma, é o que Ta-nehisi entrega com seu romance: uma nova versão da fundação dos Estados Unidos — em que aqueles que prosperaram a partir da exploração e desumanização dos outros, são figuras desprezíveis que não merecem mais do que um aceno, e aqueles que lutaram pela própria liberdade e de seus irmãos são os verdadeiros heróis que merecem ser lembrados. Como uma das abolicionistas mais radicais coloca: “Esses idiotas, esses Jefferson, esses Madison, esses Walker, todos inebriados por teorias... Bem, estou convencida de que o mais desclassificado dos braços no campo, na terra mais miserável do Mississipi, sabia mais do mundo do que qualquer um desses filósofos americanos estufados e pretensiosos”.
“A Dança da Água”, de Ta-Nehisi Coates
- Tradução de José Rubens Siqueira
- Editora Intrínseca, 400 páginas, R$ 59,90