Visitas turísticas a comunidades carentes sugerem que até mesmo a desigualdade social pode ser convertida em produto – desde que a incursão tenha hora certa para começar e terminar, além de segurança garantida. Mas um cotidiano de pobreza e violência pode ser apropriado também pela arte? Para o protagonista de A vista particular, o artista José de Arariboia, a resposta é sim. No novo romance do paulista Ricardo Lísias, autor de O livro dos mandarins (2009) e do premiado O céu dos suicidas (2012), Arariboia convida o público a visitar uma favela em que depósitos de armas, bocas de fumo e traficantes reais são etiquetados por ele como instalações artísticas.
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– A ideia para esse livro nasceu quando eu estava hospedado em um hotel e vi um ônibus sair para levar turistas para uma favela. Há também passeios assim na fronteira entre México e Estados Unidos, local onde muitas pessoas morrem tentando atravessá-la. Esse tipo de turismo bizarro foi se naturalizando com o tempo. Hoje, as coisas mais absurdas são tomadas como naturais. Isso também gera uma crise de representação. Parece que as artes visuais e a literatura se esgotaram diante desse contexto – comenta Lísias.
O escritor costuma misturar ficção e realidade em sua literatura, o que já lhe rendeu até mesmo confusão com autoridades – em 2015, a Polícia Federal abriu inquérito para investigar uma suposta falsificação de documento no e-book Delegado Tobias. Neste novo romance, Lísias também faz essa mescla de modo original, inserindo seus personagens em contextos bem determinados, como o morro Pavão-Pavãozinho e o Museu do Amanhã, além de criar declarações de figuras conhecidas da imprensa, como o filósofo Luiz Felipe Pondé e convidados do programa Estúdio i (Globo News), sobre o trabalho de Arariboia. Apesar do forte vínculo com a realidade objetiva, a narrativa toma um caráter cada vez mais absurdo ao longo das páginas, com o aumento da repercussão do projeto de José de Arariboia.
– Quis fazer uma narrativa que fosse se dissolvendo ao longo do livro, para demonstrar que a literatura não está melhor do que as artes visuais. E que também não estou certo das possibilidades da narrativa literária em um momento como este – explica o autor.
Mas, apesar da “dissolução” do texto, o livro não se torna hermético para o leitor. Ao contrário, a metade final do romance levanta questionamentos importantes, como os limites entre a arte e o espetáculo. Com uma prosa rápida, composta de capítulos curtos e repletos de ação, A vista particular reflete sobre a capacidade da arte e da literatura de ainda causarem estranhamento ou fascínio em uma sociedade com os sentidos embotados pela banalização da violência e da desigualdade.
– Na semana em que A vista particular chegou às livrarias, um homem foi arremessado de alto do morro Pavão-Pavãzinho. Foi tudo filmado e compartilhado. Parecia mais uma cena do meu livro. É bárbaro, absurdo, mas real – conclui Lísias.