Em maio, ao fazer uma palestra em Porto Alegre pelo ciclo Fronteiras do Pensamento, Mario Vargas Llosa citou Jeremías Gamboa, autor de um romance de 500 páginas intitulado Contar tudo, como um dos grandes nomes da nova literatura peruana. Na tarde de sábado, na Sala Leste do Santander Cultural, um bom número de espectadores teve a oportunidade de conhecer Gamboa e ouvi-lo falar de sua obra.
A conversa teve a participação do jornalista de Zero Hora Carlos André Moreira e foi mediada pela professora Deise Leite Bittencourt Friedrich, que leciona Língua Espanhola no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS). Gamboa veio à Feira do Livro de Porto Alegre para promover a edição brasileira do romance Contar tudo, publicada há pouco pela Alfaguara. No livro, de inspiração autobiográfica, um jovem autor, Gabriel Lisboa, passa 10 anos equilibrando o exercício do jornalismo com a ânsia de seguir uma vocação que o impele a querer ser escritor. A primeira metade do livro se estende pela minuciosa narração da experiência de Gabriel primeiro como estagiário, depois como jovem redator em várias publicações impressas até ser elevado a editor-assistente de uma grande revista semanal. Enquanto no Brasil a rotina de redações raramente é tema de romance, mesmo os escritos por jornalistas que deixam a profissão para se tornar escritores, de acordo com Gamboa, no Peru esse é um tipo de livro que já praticamente forma uma tradição.
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– Um dos grandes romances do Peru é Conversa na Catedral, de Vargas Llosa, em que temos ali também personagens que são jornalistas, que gostariam de escrever e não escrevem. Não sei se conhecem aqui no Brasil, mas há também um romance de um autor chamado Jaime Bayli chamado Los últimos dias de la prensa, em que o personagem, um adolescente, começa a trabalhar em um jornal diário no momento em que ele começa a entrar em colapso, e esse colapso é fundador para sua vida. Ou seja, há grandes exemplos – disse Gamboa, que também citou Tinta roja, romance do chileno Alberto Fuguet, que, brincou ele, deveria contar como peruano, já que o "romance sobre jornalismo é um gênero nosso".
Contar tudo tornou-se um best-seller no Peru, muito lido e discutido principalmente por jovens leitores, e também provocou seu tanto de controvérsia, de acordo com Gamboa. Ao longo de suas 500 páginas, a narrativa acompanha Gabriel Lisboa por seu amadurecimento como contista, como jornalista, e o estabelecimento de amizades sólidas com um grupo de outros jovens aspirantes a poetas, mas passa ao largo do momento histórico que o Peru vivia e que é testemunhado pelo protagonista, com o desmantelamento do Sendero Luminoso e a ascensão de Fujimori. Isso tem provocado algumas críticas no país.
– Não queria fazer um romance sobre política ou sobre a sociedade peruana, porque para isso o jornalismo já cumpre a função de forma mais eficiente. Queria um romance que se estendesse sobre as descobertas de um personagem que passa por suas primeiras vezes: as primeiras aulas, o primeiro emprego, os primeiros amigos, o primeiro beijo, o primeiro cigarro de maconha, a primeira fileira de coca, a primeira relação sexual. Até Vargas Llosa ao ler o manuscrito comentou: "Mas esse moço não se interessa nada por política".
A relação com Llosa e com outros grandes artistas peruanos como Cesar Vallejo é de admiração e de reconhecido exemplo. Ao ser perguntado sobre se o nobelizado Vargas Llosa projetava uma sombra desagradável sobre futuros autores – algo que um escritor colombiano, Efraím Medina Reyes, já declarou sobre García Márquez –, Gamboa comentou que Llosa se apresenta como um modelo diferente. Para ele, Márquez sempre se dedicou, em entrevistas e artigos, a apagar as marcas do esforço artesanal da escrita. Já Vargas Llosa, além de manter uma relação mais aberta com autores da nova geração, fala sobre o processo de escrita como uma sucessão de erros até conseguir algo satisfatório.
– Nas entrevistas de um livro chamado O cheiro da goiaba, García Márquez fala que passava o dia até conseguir uma página perfeita e depois não alterava mais. Vargas Llosa sempre admitiu que escrita é um trabalho duro, que se escreve e se reescreve mais de uma vez os mesmos livros. Ele projeta uma imagem de "pai" menos intimidante, ou melhor, de "avô". Ele deixa claro aos escritores que é possível errar.
Ao falar de sua relação com o Brasil – o protagonista do romance é fã de Caetano, por exemplo, Gamboa comentou que a música brasileira dos mestres baianos da MPB ajudou-o a ficar em paz com sua própria identidade.
– Sou mestiço de indígena, e no Peru ser mestiço é algo difícil. Há um ministério para cuidar dos indígenas, mas não dos mestiços, a mesma pessoa pode ser mestiça ou não de acordo com o lugar em que está. E a música de Caetano e Gil celebrando o caráter mestiço da nação brasileira foi algo para mim muito libertador – comentou.