O 23º Porto Alegre Em Cena, que terminou nesta segunda-feira (26/7), refletiu pelo menos dois caminhos visíveis na produção cênica brasileira dos últimos anos: uma guinada política do ponto de vista do conteúdo e uma adesão a procedimentos performáticos ou pós-dramáticos no que diz respeito à forma. Trocando em miúdos, isso significa que histórias com começo meio e fim, protagonizadas por personagens bem caracterizados, transformam-se cada vez mais em encenações fragmentadas cujos múltiplos sentidos dependem muito da decodificação dos espectadores. Essa mudança sublinha o potencial crítico das peças.
Artistas que já trabalharam com o teatro em seu formato mais tradicional apareceram no Em Cena em criações radicais, nas quais desafiam o limite entre o teatro e a performance. Em Nós, o Grupo Galpão encontrou o diretor Marcio Abreu para tratar de questões da atualidade por meio de um grupo de pessoas que preparam sua última refeição – e depois a oferecem aos espectadores. Figuram aqui, de forma fragmentada, temas como desigualdade social, racismo e violência. Mas nenhum sentido é simplesmente dado: a construção exige participação do público, o que se materializa, ao final do espetáculo, na presença de espectadores no palco.
Leia todas as notícias do 23º Porto Alegre Em Cena
Conheça os vencedores do 11º Prêmio Braskem Em Cena
Desde que a população voltou às ruas, em junho de 2013, a situação do país inspirou no teatro uma retomada da questão política, o que tem se verificado em produções apresentadas desde então. Por vezes, a questão aparece como uma referência ou cena pontual; outras vezes, inspira um trabalho inteiro. Este último foi o caso do grupo pernambucano Magiluth com a montagem O ano em que sonhamos perigosamente, baseada em manifestações como o movimento Ocupe Estelita, no Recife, e Occupy Wall Street, nos Estados Unidos. Com título que remete a um livro do filósofo esloveno Slavoj Zizek sobre as revoluções de 2011, a peça traz referências diluídas em um sofisticado trabalho de construção cênica que a tornou uma das boas surpresas desta edição do festival, embora a qualidade do grupo pernambucano já fosse conhecida.
As políticas de identidade estiveram presentes em Vaga carne, de Grace Passô, e AfroMe, do grupo Pretagô (e, de maneira mais sutil, em Dança do tempo, da UTA). Grace imaginou uma voz que tem a capacidade de invadir corpos vivos e objetos inanimados. Embora se preste a muitas reflexões, a artista tem particular interesse pelo lugar do corpo na sociedade – especificamente, o corpo da mulher negra. Também nessa seara o grupo Pretagô apresentou um sarau com músicas e textos que denunciam a violência contra os negros e valorizam a cultura de matriz africana.
Político em um sentido amplo, mas não menos potente, o espetáculo de dança BiT, da coreógrafa francesa Maguy Marin, encerrou o festival como uma esfinge para os desavisados que esperavam algo mais convencional. Marin apresentou uma performance que desconstrói o que se poderia entender por dança ou teatro: seis artistas executam, de mãos dadas, uma estranha farândola – dança típica provençal – ao som da batida da música eletrônica. Nessa metáfora da arte de viver junto, estão representados a alegria, o prazer, a violência e o abuso. Uma feliz coreografia se transforma, em questão de minutos, em uma dança macabra, lembrança sempre impertinente da brevidade da vida. Ao final, questiona se não deveríamos saltar em direção ao desconhecido, o que vale tanto para a arte quanto para a vida.