Os moradores de Los Angeles ganharam uma nova previsão do tempo durante a pandemia, e tudo graças a David Lynch. Todos os dias, nas últimas semanas, o cultuado diretor de Twin Peaks olha pela janela de seu escritório e divulga boletins meteorológicos de forma singular:
— Mais uma vez, nuvens matinais. Alguns céus azuis tentando bisbilhotar. Os raios solares dourados ainda não estão aqui. Cerca de 63 graus Fahrenheit, 17 Celsius. Deverá subir novamente até os 70 nesta tarde, em torno de 24 Celsius. E aquele sol dourado da Califórnia deverá estar aqui depois do almoço. Um ótimo dia a todos — informou em 17 de junho.
É um ritual que ele vem mantendo desde 11 de maio, no canal do YouTube David Lynch Theater. Eventualmente, Lynch sai do script, com vídeos como What Is David Working on Today? ("No que David está trabalhando hoje?"), em que mostra seus trabalhos como carpinteiro, ou em pequenas notas pessoais, como um vídeo de Feliz Aniversário a Paul McCartney.
Também há uma série de curtas do diretor, que não lança um novo longa desde Império dos Sonhos, de 2006. Abaixo, um vídeo feito como protesto contra o racismo, diante da mensagem "black lives matter":
Mas essa não é a primeira vez que o cineasta, de 74 anos, se volta à meteorologia para passar o tempo. No passado, ele já fez outros vídeos com boletins similares, no mesmo cenário, inclusive com a participação de Laura Dern em dado momento. Lynch, contudo, não é o único diretor aproveitando o período de isolamento para retomar antigos projetos. Talvez ele seja simplesmente o mais excêntrico.
Quentin Tarantino
Quentin Tarantino, por exemplo, usou uma boa parte de março e abril para atualizar suas críticas no site do New Beverly Cinema (fechado por causa da pandemia, o estabelecimento pertence a Quentin desde 2007). Se em janeiro e fevereiro foram três novos reviews, o número pulou para 15 nos dois meses seguintes.
Como seria de se esperar do diretor de clássicos cult como Pulp Fiction e Cães de Aluguel, reverenciado por saber como ninguém misturar gêneros e não poupar referências a outros filmes em sua obra, a lista de produções revisitadas é bem variada. A maior parte é de longas dos anos 1970, que vão desde filmes obscuros como Conspiração Infernal (1972), de Lamont Johnson, até Uma Lição Para Não Esquecer (1971), dirigido e estrelado por Paul Newman.
Tarantino não poupa palavras para falar sobre o grande amor de sua vida, o cinema, e os artigos são longos e bastante específicos. Há um espaço considerável para obras de artes marciais, o que também reflete as peculiaridades de Quentin, como uma análise do ator Wang Yu ("Superstar! Super director!", descrito assim mesmo, com as exclamações) ou uma crítica de Dynamite Brothers (1974) ("um híbrido de Hong Kong Kung Fu com Blaxploitation").
Entre reflexões sobre os filmes, ainda é possível encontrar lembranças de Quentin, agora com 57 anos, como na introdução da crítica de Amargo Pesadelo (1972), de John Boorman. "Eu assisti com minha mãe em um encontro, aos 10 anos de idade, em uma sessão dupla com Meu Ódio Será Tua Herança (uma das melhores noites de cinema da minha vida)."
O New Beverly Cinema, de Tarantino, está fechado por causa da pandemia
Pedro Almodóvar
Falando em prolixidade, o cineasta espanhol Pedro Almodóvar, 70, decidiu contar ao mundo inteiro como foi sua quarentena em Madri. Em quatro artigos no jornal El Diario, publicados entre 30 de março e 11 de abril, ele narra em detalhes seus sentimentos e ações durante o confinamento por conta do coronavírus.
"Hoje é meu 11º dia em isolamento; comecei na sexta-feira, 13 de março. Desde então, me organizo para enfrentar a noite, a escuridão, porque vivo como se estivesse em estado selvagem, seguindo o ritmo marcado pela luz que entra pelas janelas e pela varanda", revela na primeira parte, intitulada A longa jornada pela noite ("El largo viaje hacia la noche").
O relato, que começa com pura melancolia, às vezes tende a se afastar da realidade. Mesmo uma simples volta ao mercado, após 17 dias em isolamento total, torna-se um grande evento que desencadeia uma série de reminiscências de uma aventura com Madonna. "Tudo isso pode parecer frívolo, e é, mais como uma crônica escrita por Patty Diphusa do que uma sobre o isolamento em que vivemos", reflete a certa altura.
Logo em seguida, no entanto, mostra que as voltas para se afastar da realidade são um esforço ativo. "Prefiro não pensar nas vítimas (isso não é verdade, tento ao máximo não pensar, da melhor maneira possível). Todos conhecemos os números terríveis e escrevi isso precisamente para esquecê-los; é uma forma de escapismo prospectivo. Se eu parar para encarar a realidade, acho que vou cair morto. E eu não quero". Almodóvar, então, apresenta recomendações de livros, de filmes, e conta histórias antigas, para escapar por um momento da atualidade.
Alfonso Cuarón
Em um contraponto mais animado, os cineastas que estão passando a quarentena com os filhos têm tido uma experiência muito diferente. Alfonso Cuarón, 58, se tornou uma sensação no Tik Tok ao aparecer como coadjuvante nos vídeos da filha.
Na primeira aparição, o mexicano, que conquistou o Oscar de direção em 2019 com Roma, parece estar desavisado, calmamente aproveitando seu café da manhã enquanto ela dança ao seu lado. Já em sua segunda participação especial, o cineasta mostra algum esforço para acompanhar a coreografia — mas, definitivamente, ainda precisa de alguns ensaios para acompanhar o ritmo de Tess.
Apesar das risadas, Cuarón também tem se mantido atento aos graves problemas gerados pela pandemia. Ele tem chamado atenção principalmente ao impacto nos empregados domésticos no México. "Milhares de trabalhadores domésticos perderam seus empregos ou salários devido à crise. Eles são trabalhadores e, como tal, têm direitos e os empregadores têm responsabilidades. Obrigado a todos que se juntaram à campanha para gerar essa conscientização. #CuidaAQuienTeCuida", publicou no final de maio em suas redes sociais.
Ava DuVernay
Já Ava DuVernay aproveitou o isolamento para assistir outra vez a longas como Um Lugar Chamado Notting Hill e O Cavalo de Turim, afirmando que preferiu "fazer menos descobertas" e ter mais "conforto na visualização".
"Estou assistindo às histórias que sempre amei de novo. Confortada por imagens e palavras que já abracei antes. Acho que quero ter certeza de que o que estou assistindo me abraça de volta. Não percebi isso até a hora em que digitei", publicou no Twitter. Ela estava respondendo ao também cineasta Guillermo del Toro, que questionou o que os colegas estavam fazendo durante o isolamento.
A diretora de Selma e Olhos que Condenam também contou que Barra Pesada, de 1998, se tornou uma de suas obras preferidas. "Um clássico do cinema negro por capturar nossa pele e a Era de Ouro do hip hop. Malik Sayeed deveria receber elogios por sua fotografia. Estelar! Dirigido por Hype Williams. Foi deixado de lado pelos críticos. Eles não compreenderam a beleza", escreveu.
De abril para cá, Ava anunciou um novo projeto. Após uma onda de protestos antirracistas varrer os Estados Unidos, por causa do assassinato de George Floyd, a diretora anunciou a iniciativa LEAP: Law Enforcement Accountability Project ("Projeto de prestação de contas a profissionais da lei"). O objetivo da organização será expor policiais norte-americanos processados por brutalidade.