Arte e poder são dois temas que interessam sobremaneira ao diretor russo Aleksandr Sokurov, autor de filmes que combinam rigor histórico e provocação estética. Em Francofonia, o realizador exercita com notável habilidade essa marca autoral em uma nova exaltação à cultura clássica, como a que conduziu o seu monumental Arca russa (2002), tour de force que entrou para a história do cinema ao ser registrado em um único plano-sequência – façanha possibilitada pelo então novo suporte digital de alta definição, do qual Sokurov foi um dos primeiros adeptos.
Em Arca russa, Sokurov percorreu salões e corredores do Museu do Hermitage, em São Petersburgo, na Rússia, para erguer um painel histórico – e crítico – de seu país, iluminando o apagar das luzes da monarquia czarista diante da revolução comunista. Francofonia, que entrou em cartaz esta semana no Brasil com o subtítulo Louvre sob ocupação, tem como cenário o imponente Museu do Louvre, inaugurado em Paris em 1793 e consagrado pelo tempo como o mais famoso e representativo acervo da história da arte no mundo.
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Sokurov é conhecido por sua erudição. Já afirmou que a literatura e a pintura são artes mais elevadas do que o cinema. Cultura, para ele, é o anteparo da barbárie, é o que sobrevive ao tempo para contar nossa história. Em Francofonia, o diretor parte de nomes com os titãs russos das letras Tchékov e Tolstói, analisa os traços do arquiteto francês Pierre Lescot e dedica-se, lógico, aos grandes artistas de diferentes épocas e escolas abrigados no Louvre.
Um expediente narrativo engenhoso é usado por Sokurov para biografar o Louvre e destacar os tesouros de seu acervo – que inclui ainda milenares esculturas e artefatos das civilizações grega, egípcia e assíria, entre outras joias da Antiguidade. O diretor estabelece como eixo da narrativa histórica a ocupação da França pela Alemanha na II Guerra, em 1940. Neste cenário, coloca dois atores para viver personagens reais: Jacques Jaujard (1895 – 1967), diretor do Louvre à época, e o conde Franz von Wolff-Metternich (1893 – 1978), oficial nazista designado por Hitler para inventariar o patrimônio cultural e histórico dos países invadidos e pilhados pelo III Reich.
Pouco antes de Hitler passear por Paris, as obras mais valiosas do Louvre foram escondidas nos arredores da cidade. Metternich precisava da ajuda de Jaujard para localizá-las. Mas um detalhe peculiar mudou o curso da história. Com origem aristocrata e amante das artes e da cultura francesa, o militar alemão fez o possível para postergar o envio do acervo para um destino incerto em Berlim.
O episódio é lembrado em meio a digressões alegóricas pelo interior do Louvre conduzidas por três narradores: o próprio Sokurov; Marianne, a figura feminina representativa da República consolidada pela Revolução Francesa, que fica a repetir o lema pátrio "Liberdade, Igualdade e Fraternidade"; e um vaidoso Napoleão Bonaparte, que admira quadros sobre seus feitos. O imperador, aliás, foi responsável por abastecer o Louvre com peças de grande importância, muitas delas surrupiadas dos países que subjugou em sua megalomania expansionista.
Esse paradoxo provocativo evocado pela figura de Napoleão é complementado por outra observação ácida de Sokurov sobre um tema que ainda hoje pisa nos calos do orgulho francês: a passividade com que parte do país encarou a ocupação nazista e o colaboracionismo com o invasor. Imagens documentais espelham essa questão polêmica na feroz resistência dos russos aos nazistas, simbolizada na batalha de Stalingrado.
O caldeirão cultural em que ferve a criatividade de Sokurov apresenta ainda uma conversa (real ou encenada?) do diretor com o capitão de um navio que transporta por águas turbulentas contêineres com obras de arte. Uma provável metáfora sobre o permanente risco que o patrimônio cultural e histórico da humanidade corre no mundo contemporâneo.
Francofonia é um filme carregado de beleza e simbolismo. Sokurov oferece uma experiência cada vez mais rara de se encontrar na sala de cinema. Assina um monumento digno de figurar no museu que homenageia.