Histórias de superação, conquistas épicas, quedas e voltas por cima, tão recorrentes nas trajetórias de ídolos do esporte, nunca tiveram grande apelo no cinema brasileiro de ficção. Curioso, em um país que ostenta em sua galeria de campeões nomes como Pelé e Ayrton Senna, entre outros que costumam ser reverenciados em bons documentários – o rei do futebol, aliás, só agora ganhou sua cinebiografia, em uma produção americana: Pelé: O nascimento de uma lenda, ainda sem previsão de estreia por aqui.
Coube ao lutador de MMA (sigla em inglês para artes marciais mistas) José Aldo encarar a resistência de realizadores e produtores em assumir o risco de prestar um tributo à altura do mito, com orçamento limitado e com a dinâmica peculiar que exige a reprodução de seus feitos na tela. A luta corpo a corpo, como mostram grandes clássico do cinema, tem grande potencial cinematográfico em sua carga de drama, ação e tensão. Em resumo, é mais fácil de reproduzir do que uma partida de futebol ou uma corrida de Fórmula 1.
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Em cartaz a partir desta quinta-feira, após uma semana de pré-estreia, Mais forte que o mundo – A história de José Aldo aposta na popularidade que esse esporte alcançou no Brasil e no mundo para seduzir o público. A trajetória do amazonense de 29 anos, que alcançou o título mundial do UFC (Ultimate Fighting Championship) na categoria peso pena e ficou por 10 anos invicto – até perder o cinturão em dezembro de 2015 –, reunia, na avaliação do diretor paulista Afonso Poyart, ingredientes para um filme voltado não apenas aos entusiastas dos embates no óctogono entre esses modernos gladiadores especialistas em múltiplas artes marciais.
Poyart ficou conhecido por seu primeiro longa, 2 Coelhos (2012), moldado em cenas de ação e efeitos especiais pouco comuns no cinema nacional. A boa recepção na estreia rendeu um convite para trabalhar em Hollywood, dirigindo astros como Anthony Hopkins e Colin Farrell no suspense sobrenatural Presságios de um crime (2015).
– Recebi o convite para o filme do José Aldo quando estava exibindo o trailer de 2 Coelhos. A (distribuidora) Paris Filmes queria um filme sobre MMA. Eu não conhecia esse universo, fui pesquisar e encontrei o José Aldo. O que me chamou a atenção na história dele foi sua conexão emocional muito forte com o pai. E fui entendendo que não seria um filme de luta, mas sim sobre um homem lidando com seus demônios – diz Poyart em entrevista a Zero Hora.
O diretor explica que o projeto ficou parado quando surgiu o trabalho nos EUA. Nesse meio tempo, o papel que seria de Malvino Salvador ficou com José Loreto. Mais forte que o mundo é dividido em dois atos. O primeiro, mais sombrio, acompanha o rapaz pobre em meio aos conflitos domésticos protagonizados pelo pai alcoólatra e violento (Jackson Antunes), que descarrega suas frustrações cotidianas surrando a mulher (Cláudia Ohana). Para proteger a mãe e as duas irmãs menores, José Aldo passa a encarar o pai. E este, em seus momentos de terna lucidez, encoraja o filho ao tentar a sorte no Sul.
O segundo ato transcorre com a chegada de José Aldo ao Rio, onde vai morar e fazer pequenos serviços na academia de luta em que trabalha um conhecido de Manaus (Rafinha Bastos). Logo, ele cai nas graças do proprietário e treinador Dedé Pederneiras (Milhem Cortaz), que identifica na turbulência emocional do rapaz o combustível de sua força e fúria. E é nesse ambiente que José Aldo também se encanta por uma lutadora, sua futura mulher Vivi, (Cléo Pires).
– Para quem não gosta de luta, tem drama e romance – explica Poyart. – A história não é só pautada nas vitórias do José Aldo, mas também nas derrotas e em tudo o que esse cara passou. Isso faz parte de uma biografia de sucesso. Fiz várias entrevistas com ele antes de escrever o roteiro. Encarou numa boa (o foco no alcoolismo do pai) e as liberdades ficcionais que precisaram ser tomadas. É um cara muito bem resolvido.
Uma maneira de representar os conflitos emocionais de José Aldo foi colocá-lo, destaca o diretor, em confronto com ele próprio:
– Achava importante ele ter um arqui-inimigo. Que é o vilão do José Aldo? É ele mesmo. O ódio que cultivou pelo pai foi combustível para sua começar sua carreira e também começou a atrapalhar sua vida, ameaçou sua carreira. Ele precisava exorcizar esses fantasmas.
Mais forte que o mundo exibe um bom desempenho do elenco, em especial de Loreto, que consegue equilibrar o desgaste da atuação física e a densidade dramatúrgica que seu complexo personagem por vezes exige. Antunes, por sua vez, compõe um sujeito repulsivo, mas capaz de provocar empatia espelhando no seu fracasso o desejo de que o filho não lhe siga no destino miserável. E Cortaz é sempre aquele bom ator que preenche com robustez tipos rígidos e de poucas palavras como um mestre de lutador em formação. Em suas situações melodramáticas, a trama exagera um tanto nas frases edificantes de efeito e no didatismo da trajetória de altos e baixos que pontuam a ascensão de José Aldo. No que diz respeito às cenas de ação e luta, o resultado impressiona pelo impacto visual.
– Eu trouxe dos Estados Unidos um aprendizado de como se planeja e constrói cenas de ação – afirma Poyart. – Filmamos com três câmeras sempre, com cinco em algumas diárias. Tinha muito material para a edição (como nos longas anteriores do diretor, assinada pelo gaúcho Lucas Gonzaga).
Sobre essa experiência em Hollywood, Poyart sintetiza:
– Foi positiva, mas não foi fácil. Saí de lá arrasado emocionalmente e fisicamente. A gente está acostumado aqui com um cinema mais autoral. Lá tem produtores por cima, a pressão do dinheiro e o ego do atores. O diretor fica no meio desse rolo compressor. Tive embates criativos com o Anthony Hopkins. É um ator ganhador de Oscar que vê um diretor recém-chegado do Brasil, com apenas um filme no currículo. Ele me testou em alguns momentos, tivemos uns arranca-rabos. Dentro do escopo criativo, foi normal, mas não foi fácil.