A menina Alice cresceu e amadureceu. Na exemplarmente conservadora e patriarcal era vitoriana que cobre a Inglaterra de meados do século 19, ela se impõe como uma jovem mulher dona de seu nariz. Comanda um navio pelos sete mares e enfrenta corsários com a coragem de um calejado marujo. Quer tocar com a mãe o negócio herdado de seu falecido pai. Faz e fala o que bem entende e encara numa boa narizes torcidos de sisudos aristocratas quando surge num baile de gala vestindo um colorido terninho imperial chinês.
Com esse perfil tão contemporâneo, a protagonista de Alice Através do Espelho representa as meninas e mulheres que seguem na batalha por respeito e igualdade nas lidas do dia a dia nas diferentes frentes que se colocam entre a vida doméstica e a rotina profissional. A Disney já percebeu há algum tempo que era imperioso modernizar as ambições motivações de suas heroínas, tanto nos desenhos animados quanto nas aventuras juvenis que produz para o cinema e a televisão. Alice ergue bem alto essa bandeira.
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Em cartaz no circuito com cópias legendadas e dubladas nas versões 3D e convencionais, Alice Através do Espelho dá sequência a Alice no País das Maravilhas (2010), dirigido por Tim Burton. Se a incursão anterior pela fábula surrealista de Lewis Carroll (1832 – 1898) buscava, entre as liberdades tomadas, ser reverente ao texto original e tinha como referência no imaginário do público a clássica animação da Disney de 1951, Alice Através do Espelho soltou ainda mais as amarras com a obra matriz.
Burton entregou a direção a James Bobin (de Os Muppets e Muppets 2 – Procurados e Amados), ficando na função de produtor executiva. A rigor, essa continuação segue sendo um projeto com sua marca autoral, para bem e para o mal, já que repetem-se aqui tanto o apuro técnico que tão bem ilustra o universo fabular quanto os cacoetes narrativos – de imagem e som – que repetem-se em Burton filme após filme embaralhando e sensação de deslumbre e enfado.
Da trama original de Carroll, está no filme um esboço do argumento: Alice, novamente interpretada por Mia Wasikowska, volta ao mundo fantástico que desbravou quando adolescente ao mergulhar em um espelho mágico. Lá chegando, fica sabendo que o Chapeleiro Maluco (Johnny Depp, agora compondo, por imposição da história, um tipo menos histérico) está definhando à morte por conta da amargura decorrente de um trauma familiar que vivenciou na juventude – e pelo qual arrasta um sentimento culpa.
Alice descobre que a única forma de ajudá-lo é por meio de uma viagem no tempo que lhe permita consertar o estrago. Um artefato possibilita isso: a cronosfera, guardada pelo Tempo em pessoa (papel de Sacha Baron Cohen, novidade no elenco). Como se sabe em tramas desse tipo, interferir no andar de acontecimentos passados pode ter graves consequências no futuro presente. É o que descobre Alice ao aproveitar a jornada para também consertar os conflitos entre a bondosa Rainha Branca (Anne Hathaway) e a colérica Rainha Vermelha (Helena Bonham Carter), que remonta à infância das duas irmãs.
Dar unidade e fluxo narrativo às breves histórias que Carroll apresentou como um aventura nonsense pautada pelo turbilhão emocional de uma garota entre a realidade, o sonho e o delírio é um desafio que Alice Através do Espelho cumpre parcialmente. As transgressões feitas para apresentar um produto voltado ao grande público de diferentes faixas etárias acaba colocando este segundo título no patamar de tantas outras frenéticas aventuras sobre idas e vindas no tempo.
O paciente e inteligente jogo de xadrez proposto por Carroll é traduzido em um alucinado videogame, no qual a pressa em avançar de uma fase a outra não deixa maiores brechas – no (des)equilíbrio entre o entretenimento e o estímulo à reflexão – para que se absorva da jornada de Alice o que ela tem de mais relevante em seus aspectos psicológicos, lúdicos e comportamentais.