Na idade que alcancei, já tenho dificuldade de achar parceiros para relembrar coisas antigas. Os que superaram minha idade são poucos, muitos estão desmemoriados e outros tantos desinteressados de lembrar fatos e coisas de um passado remoto.
Morei neste gostoso bairro do Menino Deus entre os sete e os 12 anos, de 1935 a 1940. E a ele voltei, já bem idoso, em 2013. Aquele saudoso estágio infantil me encheu de boas lembranças, de muitas coisas desaparecidas, que em vão tento descrever aos mais jovens. E outras, que sei por leitura de livros ou jornais, mas que nunca vi ou não guardei na memória.
Esse é o caso da Rua 28 de Setembro, que existia onde hoje é a parte final do canal do Arroio Dilúvio. Devo tê-la avistado e conhecido, mas nada me lembro dela. Também não conheci o Jardim Zoológico, fundado pelo Coronel Ganzo, pelo óbvio motivo de ter sido desfeito antes da minha chegada ao Menino Deus e ao mundo. Mas também não encontrei ninguém – o que bem poderia ocorrer – que o tivesse conhecido em 1925, quando consta haver sido extinto. Essa é a grande dificuldade: encontrar parceiros para rememorar coisas antigas, ou para me informar de outras que ignoro.
Quem se lembra ainda do Ratinho, o homem da flauta de taquara, que tocava o seu instrumento nas esquinas do bairro? Quem recorda a louca Ciriaca, que respondia às provocações da gurizada com uma ladainha de palavrões e rematava sua catilinária erguendo a saia e mostrando o gordo traseiro ao público? O preto que vendia "mocotó baiano" num grande recipiente aquecido por um braseiro?
E os pregões, hoje desaparecidos, do "feijão miúdo, batata-doce e aipim gema de ovo", que o próprio lavrador trazia em sua carrocinha? E quem poderia esquecer o circo Irmãos Gomes, estabelecido com o seu barracão num terreno baldio da José de Alencar, logo ali, depois da Oscar Bittencourt, bem ao lado da casa do doutor César Pestana? Os times de futebol varzeanos eram numerosos e achavam espaço para as suas partidas nos grandes terrenos baldios que havia na Barão do Guaíba, na Grão-Pará e outras ruas do bairro.
E, por falar em futebol, confesso que ainda vi jogar o F. C. Porto Alegre, de jaqueta verde e branco, apelidado de "caturrita" e que era dono da Chácara das Camélias, hoje espaço de uma escola estadual e do supermercado Nacional. Muito mais tarde, por leituras de história da cidade, fiquei sabendo que esse Porto Alegre era o mesmo Fussball, nascido no bairro Navegantes, no mesmo ano do imortal Tricolor e seu primeiro adversário. Vão dizer que eu minto se disser que na torre da igreja do Menino Deus havia enormes corujas brancas, exemplares da coruja-das-torres, que a Enciclopédia chama de suindaras. Mas eu as vi e digo que até me atropelavam se eu fosse mexer nos sinos para cumprir alguma ordem do vigário.
E por falar na desaparecida igreja, ainda testemunhei as movimentadas festas de Natal na Praça Menino Deus, onde havia rifas e sorteios de todo gênero, jogo de argolas, tiro ao alvo...
Destas festas, há muita gente que ainda se lembra, pois ali nasciam flertes e namoros que depois resultavam em casamentos. De tudo isso, o que ficou mais vivo na memória? Talvez só o grande silêncio das noites, apenas cortado periodicamente pelo ranger ritmado do bonde República e pelos acordes da flauta do Ratinho.
Colaboração de Sérgio da Costa Franco