Há muito tempo não fazia uma viagem dessas: juntar as amigas, pegar o carro e ir para o interior do Rio Grande do Sul. No sábado de Páscoa, teve show de uma das nossas bandas preferidas em São Luiz Gonzaga, a 500 quilômetros de Porto Alegre, e aproveitamos para passear pela região.
Saímos da Capital pelas 9h para não chegar tão tarde no destino final. No meio do caminho, na BR-386, em Fontoura Xavier, chamou a atenção um paradouro com esculturas, entre elas um dinossauro gigantesco. Não resistimos e, debaixo de uma garoa, descemos para tirar fotos com o dino, a capivara e um ovo. Dava para entrar nas estruturas e posar para a câmera. Parecíamos crianças em um parque de diversões, e essa parada serviu pra mostrar que momentos divertidos podem acontecer inesperadamente.
Leia mais
Onde fazer enoturismo no Rio Grande do Sul
O que ver e fazer nos caminhos que levam a Gramado, na Serra
Como aproveitar uma visita aos cânions do Itaimbezinho e Fortaleza
O plano inicial era acampar na sexta-feira em Quinze de Novembro e ir para São Luiz no dia seguinte. Como choveu o feriadão inteiro, optamos por ficar no hotel os dois dias, mas entramos na cidade onde acamparíamos. O centro é limpo, bonito e bem cuidado – e vazio (compreensível para um feriado chuvoso). A Barragem do Passo Real fica afastada da área central, mas a visita compensa.
O fluxo de veículos é pequeno, então é possível parar o carro um pouco antes da ponte do Rio Jacuí Mirim e cruzá-la a pé para apreciar a imensidão da paisagem.
As estradas nessa parte do Estado são lindas. O visual é deslumbrante. É preciso ter cuidado para não se distrair na direção ao contemplar aquele enorme terreno ondulado com tons de verde, amarelo e marrom (vista por vezes ocultada pela densa neblina branca, que criava um cenário igualmente belo). No fim da tarde, percebemos que, a cada trevo de acesso, havia uma cruz missioneira, o que significava que, depois de umas 10 horas na estrada, finalmente havíamos chegado à Região das Missões.
Os famosos Sete Povos das Missões correspondem, hoje, a seis cidades. Em São Luiz Gonzaga, ficavam as reduções São Lourenço Mártir e São Luiz Gonzaga. Em São Nicolau, estava São Nicolau do Piratini. Em Entre-Ijuís, localizava-se São João Batista. Em Santo Ângelo, havia a redução Santo Ângelo Custódio. Em São Miguel das Missões, encontrava-se São Miguel Arcanjo. E, em São Borja, situava-se a redução São Francisco de Borja. Todos esses locais estavam nos nossos planos, com exceção de São Borja, que acabamos não conhecendo.
1. SÃO LUIZ GONZAGA
Já não há vestígios da redução de São Luiz, mas os turistas têm opções para visitar. A Praça da Matriz é convidativa para uma caminhada. Nos bancos, há mensagens e informações. Ao redor dela, estão a igreja e a prefeitura, ambos belos edifícios.
Na frente da prefeitura, há um monumento em homenagem ao índio Sepé Tiaraju, nascido na redução e um dos líderes da Guerra Guaranítica. Há outra estátua, a do poeta e payador Jayme Caetano Braun, natural de Timbaúva, antigo distrito do município. Por causa dele e de três missioneiros, São Luiz Gonzaga foi eleita a Capital Estadual da Música Missioneira.
Outra paróquia conhecida é a que abriga a Gruta de Nossa Senhora de Lourdes, construída no ponto mais alto da cidade após a promessa de senhoras que temiam um confronto sangrento entre integrantes da Coluna Prestes e de Forças Legalistas. Como o combate não aconteceu, a estrutura foi erguida dois anos depois, em 1926.
2. SÃO NICOLAU DO PIRATINI
Depois de passar pelas atrações principais do centro de São Luiz Gonzaga, avançamos os limites do município para ir até um sítio arqueológico. O GPS sugeriu o menor percurso entre São Luiz e São Nicolau, por uma estrada de chão batido. Não sabia que havia alternativa e encarei o trajeto. O problema é que, além de ter uma ponte extremamente duvidosa, a chuva fez com que a pista virasse lama. Foram 16 quilômetros de muita tensão.
São Nicolau do Piratini foi a primeira Redução Jesuítica da Companhia de Jesus, fundada em 1626 e refundada em 1687, no período dos Sete Povos das Missões. As ruínas, declaradas Patrimônio Nacional, ficam no meio da cidade. Como não é uma área cercada, a visita pode ser feita a qualquer hora. Restaram partes do piso original, do cabildo, da igreja, da adega e do sistema de esgoto. Nas proximidades, há objetos encontrados nas escavações arqueológicas e informações sobre o local.
Duas obras com material da redução são tombadas como Patrimônio Histórico e Cultural do RS. Uma delas é a Casa de Pedra, um pequeno imóvel em frente ao sítio histórico. A outra é o Sobrado da Família Silva. A casa de 1903 pertenceu a Inocêncio Silva, coronel da Guarda Nacional e filho de açorianos. A propriedade está parcialmente destruída, mas ainda é possível entrar para apreciar a arquitetura. Para quem gosta de explorar prédios abandonados, é um prato cheio. O espaço também tem importância histórica, já que foi sede de reuniões que culminaram na Coluna Prestes.
Ao sair do Sobrado, a angústia de ter de pegar uma pista desconhecida na volta – juramos que não retornaríamos pelo mesmo caminho – veio à tona. Mas o trajeto foi bem mais tranquilo e apenas dois quilômetros mais longo. A via estava em obras e muito esburacada, mas tinha asfalto, e era só isso que importava. Assim voltamos, inteiras, a São Luiz Gonzaga.
3. SÃO LOURENÇO MÁRTIR
No regresso a Porto Alegre, no dia seguinte, fomos parando para conhecer as atrações do caminho. Antes mesmo de sair de São Luiz, fizemos a primeira escala. A seis quilômetros – de estrada de terra – desde a BR-285, está São Lourenço Mártir. Este foi o sítio arqueológico mais interessante do passeio.
Na entrada da antiga redução, há uma exposição de peças encontradas nas escavações e dados sobre a rotina da comunidade. Caminhando sobre o amplo gramado, pode-se observar ovelhas pastando próximo às ruínas. Aliás, essa interação da natureza com os escombros das construções é uma das características mais marcantes do local.
As árvores emolduradas pelos fragmentos de parede da igreja formam uma cena deslumbrante. Um antigo cemitério acrescenta mistério à atmosfera.
4. SÃO MIGUEL ARCANJO
Na rodovia, passamos reto pelas placas indicando a entrada de São Miguel das Missões. Já havíamos visitado o local em 2014 e preferimos não voltar, apesar de termos gostado muito daquela vez.
As ruínas da redução São Miguel Arcanjo são reconhecidas pela Unesco como Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade – o único local do sul do Brasil com essa distinção. É o melhor conservado entre todos dos Sete Povos, tornando-se um dos cartões-postais mais famosos do Estado. Boa parte da catedral está preservada, e a cruz missioneira e o sino seguem praticamente intactos. Um museu apresenta criações de arte sacra missioneira.
Por ser uma atração muito popular – às vezes, a quantidade de gente atrapalha –, é cobrado um ingresso de R$ 5. À noite, um espetáculo de som e luz narra acontecimentos da época em que jesuítas e guaranis.
5. SÃO JOÃO BATISTA
A próxima ex-redução que conhecemos foi São João Batista, em Entre-Ijuís. Para chegar até lá, também são seis quilômetros desde a BR-285. Foi a visita que menos me chamou atenção. Pedaços da igreja e do colégio ainda estão de pé. Um conjunto de pequenas estruturas enfileiradas é a característica mais curiosa do sítio.
O cemitério semiabandonado cria um clima sombrio. Um monumento de 1959 se confunde em meio às construções do século 17. É uma obra feita de pedra em homenagem ao padre Antônio Sepp, fundador da redução. A figura representa os pioneiros da siderurgia do Brasil.
6. SANTO ÂNGELO CUSTÓDIO
A última parada foi em Santo Ângelo, maior cidade da região. O principal motivo para entrar no município foi conhecer a Catedral Angelopolitana. Erguida em 1929, foi feita com arenito no estilo barroco missioneiro. O templo fica na Praça Pinheiro Machado. No entorno, um museu a céu aberto pouco funcional – o telhado de vidro impede uma visão clara – expõe fragmentos da redução Santo Ângelo Custódio.
A estada teve de ser breve, pois já chegamos no fim da tarde e ainda tínhamos umas seis horas pela frente até Porto Alegre. Foram três dias intensos de viagem com o saldo de mais de mil quilômetros rodados, um carro imundo, lembranças de belas paisagens e muito aprendizado.
Para pensar
Enquanto eu refletia sobre o passado, em uma conversa pela internet, minha amiga Luiza Costa Gava, historiadora e futura turismóloga, posteriormente me apontou um problema do presente. Os indígenas quase não se beneficiam com a renda do turismo. Seguem à margem, vendendo artesanatos, sem uma real participação no planejamento e nas políticas de exploração da rica memória local.
Percebi que os únicos indígenas que encontrei em toda a viagem estavam na porta de um supermercado em São Luiz Gonzaga, vendendo cestas de Páscoa simples feitas por eles. A conclusão a que chegamos é de que esse é mais um lugar onde os acontecimentos são contados de maneira eurocêntrica e a partir da percepção dos brancos, o que também fica claro no material de divulgação do turismo nas Missões. Mesmo assim, é um passeio importante para descobrir uma parte da história latino-americana.