Aos 76 anos, Bernardina da Silveira Negruny, moradora de Tramandaí há 50 anos, jamais molhou os pés no mar. Não sabe explicar direito por que, mas nem mesmo pisou na areia da praia. A agricultora habita um universo que os veranistas de Tramandaí desconhecem: a Estância Velha, distrito rural da cidade, produtor de grama e arroz, um dos pontos mais distantes da orla. De carro, são cerca de 18 quilômetros até a beira-mar, que Bernardina observa só de longe, quando precisa ir ao Centro para uma consulta médica ou uma passada no banco. No município, 64% do território total correspondem à zona agrícola, uma das mais extensas de todo o Litoral Norte.
- Gosto é da roça - conta Bernardina. - Ainda sou boa na foice.
De acordo com a Secretaria Municipal de Pesca e Agricultura, são cerca de 1,5 mil moradores fixos, e há também quem mantenha no distrito sítios para lazer. O ônibus que atende a região aparece apenas segunda-feira, quarta e sexta, em duas viagens diárias.
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Bernardina divide uma casa aconchegante de madeira com os dois filhos, também agricultores, que cuidam de uma plantação de aipim, batata doce e milho. A família ainda cria galinhas - os três estão sempre de olho nos ovos dos ninhos, alvo dos lagartos que cruzam o pátio e surpreendem os moradores até dentro da residência. Afastada do trabalho árduo da lavoura por conta de problemas de visão e no joelho, a aposentada preenche o tempo com as tarefas domésticas, lavando toda a roupa na mão e botando as peças a quarar no quintal.
É uma vida tranquila, tipicamente interiorana, indo pouco além do pátio cercado de uma espessa vegetação, poucos vizinhos e nenhum comércio, o que obriga a família a se reabastecer periodicamente na cidade. A superlotação de Tramandaí no período de férias não incentiva a aposentada a se aventurar por entre os guarda-sóis para, enfim, apresentar-se ao pedaço de oceano tão próximo.
- Acho bonito, gosto de olhar, mas tenho medo - justifica.
Lugar para fugir da cidade grande
Perto dali, Maria Jussara Calderón da Silveira, 56 anos, é referência para a comunidade em um posto dos Correios. Ela distribui a correspondência entre os moradores e anota recados que chegam por um telefone que opera via rádio - não é sempre que os celulares funcionam na região. Ao redor, há uma igreja, um centro comunitário e uma escola com 17 alunos e dois professores. No intervalo do pouco serviço que tem, Jussara costura, toma chimarrão, estica o olhar para as casas da vizinhança. Na Estância Velha, não existe o temor de assaltos, permitindo que siga em uso o costume de deixar janelas e portas sempre abertas. As residências são fechadas apenas quando os proprietários precisam se ausentar por algumas horas - e o receio não é de ladrão.
- É de temporal - diz Jussara.
Natural de Tapes, a atendente mora ali há 23 anos. Diz que atualmente o acesso, a partir da ERS-030, é bem mais fácil. Antes, com qualquer chuva, os automóveis trancavam, e a operação de resgate exigia até três tratores.
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Como a amiga Bernardina, Jussara vai ao centro de Tramandaí, para fazer rancho e resolver outras pendências o mínimo de vezes necessário. Costuma sair bem cedo para fugir das filas que serpenteiam pelas calçadas e do povaréu que desperta louco por água salgada nos dias de tempo bom. O último banho de mar, confessa, foi há dois anos.
- A gente se acomoda, é muito movimento, mas esse ano eu vou, se Deus quiser - completa, pensando em comprar um maiô novo "para não ficar fora de moda".
A dona de casa Ana Lúcia de Morais Salles, 30 anos, é uma moradora mais recente. Há três anos, deixou Tramandaí para viver na Estância com o marido e os dois filhos, de três e sete anos. As crianças se divertem em um pátio amplo, com cachorros, gatos e uma piscina de plástico. Ninguém ali, garantem, sente falta do mar.