A serragem que cobre o chão de um galpão na linha Berlim, em Westfália, no interior do Vale do Taquari, fornece indícios da produção inusitada que nasce das mãos de um agricultor aposentado. Os desenhos e exemplares nas paredes de madeira revelam que o trabalho em marcenaria, feito com esmero por Hugo Pott, transforma troncos de árvore em sapatos de pau artesanais. O senhor de 68 anos foi incumbido de uma missão simbólica: ser o guardião da tradição westfaliana.
— Não tinha mais ninguém aqui no município que fazia esse trabalho. O senhor que fazia faleceu, e alguém teria de fazer. Cada um tem uma ideia, um dom. Eu estou empenhado em manter a cultura westfaliana, porque o nosso grupo é muito pequeno, tem alguma coisa em Teutônia, Imigrante e Colinas, mas mais é na Westfália. Então, se não tem muito esforço daqueles poucos que tem, daqui a pouco, não tem mais essa cultura. Por isso que eu me interessei, para tentar manter — conta.
Típico das tradições rurais, o sapato de pau ou de madeira era utilizado em diversos países europeus para proteger o pé do frio, da umidade e em pedreiras, explica o historiador Denis Simões. A profissão de artesão não existia propriamente. O calçado foi trazido ao Brasil pelos imigrantes alemães.
Embora fosse utilizado em diversas comunidades alemãs no RS, ficou associado à região de Westfália, como elemento identitário – assim como na Alemanha, na região de mesmo nome, próximo à Holanda, de onde seus antepassados emigraram. O costume foi se perdendo com o uso de outros materiais.
O dialeto Plattdüütsch, falado nessa região do Vale do Taquari, é, inclusive, conhecido popularmente como “sapato de pau” e é a língua co-oficial da cidade gaúcha. Hoje, o calçado é o símbolo do município – e da cidade vizinha Teutônia, onde o único outro produtor de sapatos da região atuava até a pandemia. Pott é, portanto, o único fabricante da região.
Em Westfália, município de pouco mais de 3 mil habitantes a 116 quilômetros de Porto Alegre, o acessório é utilizado pelo grupo de danças folclóricas Westfälische Tanzgruppe e em partidas de futebol durante os jogos germânicos.
Os imigrantes alemães, que vieram ao Brasil para trabalhar, têm uma importância grande para a região, ressalta Pott, que também participa do Amigos do Sapato de Pau, um grupo que busca preservar o dialeto:
— Em honra àquelas pessoas que tiveram aquela dificuldade de viajar tão longe e se instalar aqui no mato, e as dificuldades que eles tinham, se comparar com hoje, então, a gente tem essa obrigação de manter vivas essas lembranças.
Vencedor
O ofício paralelo do agricultor é recente. Preocupada com a ausência de um sucessor para a tradição, a prefeitura promoveu um concurso de produção de sapatos de pau, em 2018. O neto do falecido artesão conhecia as técnicas e, por trabalhar em outro ramo, promoveu oficinas com os participantes para passá-las adiante – foi assim que Pott aprendeu o ofício e venceu o concurso.
— Nem sei como é que eu consegui, porque não tinha prática para usar a ferramenta. E deu nisso, então agora eu faço quando der tempo e tiver um pedido. Eu faço o possível para atender o pessoal. Se eu tivesse tempo, ia fazer mais, mas dá bastante serviço — comenta.
Os outros cinco participantes não seguiram na manufatura dos sapatos. O trabalho não é economicamente atrativo, explica Pott: não gera lucro e há um mercado limitado, o que inviabiliza grandes investimentos e a devoção ao ofício como profissão.
Os pares são feitos manualmente, com madeira da família da canela. O artesão já produziu mais de 165 pares. O pequeno, para lembrança, custa R$ 100 (ou, apenas um pé, R$ 50); um par acima de 40, em média, R$ 250; e números menores, cerca de R$ 230. Encomendas podem ser feitas pelo telefone (51) 99869-2156.
Produção manual
O agricultor é meticuloso e produz vários pares juntos, em etapas – levaria cerca de um dia e meio de trabalho para finalizar um sapato. Assim, o prazo mínimo de produção é de dois meses, podendo chegar até a um ano, para evitar desperdício de madeira.
Pott, que estudou até a 5ª série para ajudar a família no campo, adapta e “inventa” diversos equipamentos para facilitar o cansativo trabalho. O fabricante sonha em ter máquinas automáticas, assim como na Holanda e na Alemanha. Ele possui uma maquete de uma máquina antiga, porém, precisaria produzi-la, o que custa tempo e dinheiro – e o aposentado diz que não pode pensar “muito no futuro”.
— Vou até onde der. Comprei outras ferramentas para tentar facilitar o trabalho, porque ele é manual, é muito pesado. Eu noto, quando eu trabalho demais, à noite, a partir das 2h, não dá mais para dormir, adormecem as mãos — relata.
Futuro incerto
Além dos sapatos, Pott precisa manter a propriedade, cuidar da roça e de sua criação de pombos. O agricultor tem uma filha que mora em outra cidade. Ele afirma que seria pessimismo deixar de acreditar que outra pessoa dará continuidade ao ofício, mas ressalta que, no modelo atual, sem as máquinas automatizadas e mantendo um preço baixo, é difícil:
— Eu espero que sim. Mas ninguém mais trabalha assim manualmente com madeira. Nem todos têm essa vocação. Tem outros que não têm nem interesse em fazer um serviço assim.
Em meio a um mundo cada vez mais industrializado, os costumes de antigamente estão se perdendo, lamenta. A região já perdeu corais, as comunidades estão enfraquecendo, há muitas mudanças, e o ofício está incluído nesse cenário.
— Eu faço a minha parte — defende.