Laura Voigt vive a angústia de não saber quando voltará para casa. Moradora do bairro Rio Branco, em Canoas, a arquiteta deixou o local onde reside desde sempre rumo ao litoral norte para ficar segura durante a enchente. Levou pouco consigo, deixou muito para trás. Móveis, roupas, eletrodomésticos, mas, acima de tudo, ficou parte de sua história. Memórias em imagens e papel que teme nunca mais recuperar.
— Quando voltar para casa, com certeza primeiro vou atrás dos álbuns para ver se algum sobreviveu, se molhou tudo ou não — destaca a arquiteta.
Quando a água baixar e os flagelados retornarem para casa, encontrarão um cenário de difícil reconstrução, tanto material quanto emocional. A destruição deixa a sensação de que tudo está perdido, mas boa parte da memorabilia pode ser restaurada. Fotografias, livros, roupas, tendo valor afetivo ou não, podem ser recuperados total ou parcialmente.
Especialistas consultados por GZH são unânimes quanto à primeira medida a ser tomada. O mais importante é não jogar fora objetos de apelo sentimental. Existem técnicas capazes de reconstruir algumas peças. Além de, no futuro, novas tecnologias poderem ser criadas para restabelecer fisicamente as memórias. Confira
Fotografias
— A parte das fotos é o que mais me pega. Em casa, temos fotos dos tios pequenos, do casamento dos meus avós. Tem muita foto. São coisas que gosto. Me preocupa bastante. Me deixa muito triste — lamenta Laura.
Uma fotografia é uma memória em imagem. Ao mesmo tempo que tem a força de eternizar um momento, é frágil para o trato manual. O cuidado para manuseá-las deve ser o maior possível para evitar estragos mais profundos. O passo inicial é ter o mesmo zelo com que se tratam as memórias imateriais.
A professora de fotografia da Unisinos Márcia Molina relata um procedimento de restauração fotográfica da época em que estudou na Montgomery College, nos EUA. O processo é dividido em três etapas.
— A primeira parte é fazer uma triagem entre os casos mais graves e os que tiveram menos danos. Primeiro tem de se tratar as situações mais delicadas.
Cada foto, caso não fiquem grudadas uma nas outras, deve ser tratada individualmente. Na sequência, será feita uma lavagem em que coloca-se a imagem em três recipientes com água, um de cada vez, até a foto ficar limpa. Água gelada, de preferência, para ajudar na preservação das cores.
Na sequência, elas devem ser colocadas para secagem sem a incidência direta da luz solar. O sol deixará o retrato desbotado. Nessa fase, se possível, pode colocar as fotografias sobre um pano ou um pedaço de algodão. Utilizar fontes de calor distorcerá a imagem. Por fim, pode-se pendurá-las em um varal para secar naturalmente em área de sombra.
Uma outra maneira de recuperar as fotos é o uso dos negativos, nos casos de recordações mais antigas. Se molharam, repete-se o procedimento, utilizando água corrente.
Márcia enfatiza que nos tempos modernos há diversas técnicas que colaboram para a reconstrução de imagens danificadas. O próprio negativo pode ser digitalizado. Mesmo que com avarias, a recomendação é de guardar as fotos.
— Se tiver mancha, se ela perdeu pedaço, não joga fora. Temos inteligência artificial e ferramentas digitais que reconstituem fotos — explica.
Em casos de imagens que ficaram presas no vidro do porta-retrato, a indicação é de não tentar tirá-las. A tentativa de separação fará com que a cor da imagem fique no vidro e não no papel. Nessa situação, o melhor é tirar uma foto da foto para digitalização.
Livros e cadernos
— Na hora de sair, peguei o caderno de orações da Vó. Ficamos emocionados com o que vimos. Está bem caracterizado com as coisas dela, encadernado, com um convite de casamento, fotos dela. Pegamos sem querer — relata Laura.
Livros, cadernos de anotações periódicos e qualquer memória em papel têm recuperação. Espécie de cirurgiã de publicações deste tipo, a restauradora Sílvia Breitsameter lembra que diversos papéis que estavam no interior do Titanic foram encontrados seis décadas depois do naufrágio e ainda assim recuperados. Anos de submersão não foram suficientes para apagar aquelas recordações impressas. Há limites do poder de reparo, mas materiais de maior qualidade podem ser recuperados.
Assim como nas fotos, o passo inicial é refrear o ímpeto e ver o sol como aliado.
— É a pior coisa que se pode fazer — sentencia Sílvia.
A luz solar faz com que as fibras do papel se retraiam e ele fique torcido. O primordial é secar o papel, mesmo que esteja embarrado, em lugar arejado, mas que o vento não tenha contato direto com o objeto. Colocar um ventilador contra a parede para fazer o ar funcionar é uma alternativa.
A partir da secagem, se vê o que se faz para restaurar. Entre as técnicas de reforma estão a desmontagem, o conserto de folhas rasgadas e até tratamento químico em laboratório.
— Quando alagou a Biblioteca Nacional, improvisaram um varal de roupas para secar os jornais. A ideia é secar, não importa se está sujo, se está com barro. Secar naturalmente. Não usar ferro de passar roupa, secador de cabelos, nem o sol — orienta.
Roupa
Roupas, sejam elas de recordação ou para uso, também podem ganhar sobrevida. O começo do procedimento é deixar as peças de molho em um balde com água e sabão de glicerina por um período de até um dia. O objetivo é tirar o excesso de lama. Na sequência, entra em cena o processo de lavagem tradicional. Ainda, se possível, pode-se lavar um pouco à mão, enfatizando pontos específicos.
— Áreas mais acumuladas, como costuras, golas, acabamentos, botões. Não quer dizer que vai sair tudo, mas se recupera boa parte da peça — relata Paula Visoná, professora do curso de moda da Unisinos.
Em caso de artigos que perderam a coloração, é possível fazer o restauro com tingimento artesanal. O processo é feito por meio de resíduos orgânicos como casca de cebola, erva-mate usada, feijão com validade vencida, etc. Eles devem ser colocados na água e fervidos. Na sequência, deixar a roupa em contato por até 30 minutos. Em seguida, colocá-la em um recipiente com água e sal para a fixação da cor.
Em roupas do dia a dia, Paula cita o upcycling, como uma maneira de atenuar o prejuízo. O método consiste em aproveitar duas ou mais peças que seriam perdidas para formar uma nova.
Ela também ressalta que a universidade e diversas empresas do ramo da moda no Vale dos Sinos estão se unindo para ajudar os desalojados a recuperarem parte do seu vestuário.
Memória afetiva
— Querendo ou não, por mais caro que sejam as outras coisas, compramos de novo. Essas não conseguimos recuperar — sublinha Vanessa, ao citar o medo de nunca mais encontrar recordações que neste momento estão submersas em Canoas.
O valor da memória afetiva é inestimável. Trata-se de um tesouro como transparecem os relatos de Vanessa. No caso da tragédia que assola o Rio Grande do Sul, o significado pode ficar ainda mais evidente devido às perdas abruptas. O sentimento se justifica já que esses “bens” fazem parte da identidade das pessoas.
— É uma forma de restabelecer vínculos com pessoas e coisas que ela viveu. Momentos que são encorajadores, calmantes para elas. Pode se sentir aconchegada de olhar as fotos de sentir uma determinada satisfação que viveu aquilo — explica o psicólogo Alexandre Rodrigues, pesquisador do Grupo de Pesquisa Avaliação em Bem-estar e Saúde Mental da PUCRS.
Os objetos guardados com carinho são uma maneira de recordar vivências marcantes. Rodrigues salienta que, neste momento de luto e também no de reconstrução, cada indivíduo lidará de uma maneira diferente com suas memórias afetivas perdidas ou encontradas. Ele resume tudo na palavra resiliência.
— A resiliência de cada um vai transformar este período. Eles vão se reorganizar emocionalmente para voltar a aquele lugar, as memórias ajudam nisso. Para uns será mais difícil, para outras, mais fácil, mas todas têm resiliência — esclarece.