A solidariedade no Rio Grande do Sul parece enfrentar a mesma crise econômica confirmada pela alta na inflação, pela queda no rendimento médio mensal, pelo desemprego atingindo mais de 11 milhões de brasileiros e pelo aumento do número de famílias na fila do programa federal Auxílio Brasil. Entidades assistenciais que atuam junto a pessoas em situação de vulnerabilidade social no Estado admitem que a queda nas doações é grave.
Desde o início deste ano, a Casa da Sopa, no bairro Restinga, no extremo sul de Porto Alegre, tem acompanhado o número de doadores cair enquanto aumenta a quantidade de pessoas na fila que distribui almoço gratuito duas vezes por semana. A vice-presidente da entidade, Marlene Sbruzzi Ferrari, 62 anos, relata a volta de famílias inteiras ao corredor humano formado nas manhãs de quartas e sábados – os dias de distribuição da comida.
— São mães com quatro ou cinco crianças pequenas que, às vezes, chegam muito tristes porque deixaram os filhos dormir até 11h para que o almoço fosse o primeiro alimento do dia, já que não tinham o desjejum para dar. Há pessoas de idade, mas também gente muito jovem que perdeu o bico, o emprego ou a renda pequena que tinha e não consegue comprar nada porque está tudo muito caro — aponta Marlene, que atua como voluntária na entidade há 18 anos.
De acordo com o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19, lançado em 8 de junho, a fome no Brasil voltou a números registrados pela última vez nos anos 1990. Atualmente, 33,1 milhões de pessoas, o equivalente a cerca de 15% da população, não têm o que comer – 14 milhões a mais do que no ano passado. A nova edição da pesquisa mostrou ainda que mais da metade da população brasileira (58,7%) convive com algum grau de insegurança alimentar (leve, moderado ou grave).
Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua Trimestral, do IBGE, divulgada em maio, o desemprego atinge 11,3 milhões de brasileiros, e o rendimento médio é 7,9% menor do que o de um ano atrás. Hoje, no Brasil, há 38,7 milhões de trabalhadores informais. Já os trabalhadores com carteira de trabalho assinada são 35,2 milhões.
Enquanto isso, a fila de espera do programa federal Auxílio Brasil dobrou entre março e abril deste ano, chegando a 2,7 milhões de famílias, conforme mapeamento da Confederação Nacional de Municípios. Somente no Rio Grande do Sul, até maio, conforme levantamento pedido por GZH ao Ministério da Cidadania, 14.564 famílias aguardavam para ter o direito a receber o benefício mensal de R$ 400. As que têm direito são aquelas em situação considerada de extrema pobreza, com renda mensal de até R$ 105 por pessoa, ou de até R$ 210 para famílias que possuam gestantes ou filhos de até 21 anos incompletos.
Número de quentinhas aumentou
Até o ano passado, a Casa da Sopa do Bairro Restinga distribuía cerca de 400 quentinhas por semana. Agora, havendo alimento suficiente, passam de 600. A cada sete dias, são consumidos pelo menos 15kg de feijão, 30 kg de arroz e 30 pacotes de massa ou 10kg de polenta. Existente há 22 anos, a entidade mudou de sopa para viandas prontas durante a pandemia de covid-19, para facilitar a entrega.
Cada pessoa tem direito a uma embalagem com arroz, feijão e uma carne, que pode ser frango, guisado, salsichão ou salsicha. Pelo preço, a carne vermelha não chega há muito tempo perto das geladeiras da Casa. Também acompanha um pão cacetinho, massa ou polenta e um legume, que pode ser cenoura, chuchu ou batata-doce. Semanalmente, a entidade também recebe 90 ovos doados por um comerciante. Como não são suficientes para distribuir um a cada pessoa da fila, Marlene revela o que faz com esta doação:
— Quando a carne está pouca, corto o ovo em dois e divido em dois pratos. Quando temos alguma das carnes suficiente, cozinho os ovos e os corto para reforçar a salada. De qualquer forma, fica bem gostoso, né?
Com as doações em baixa, duas das quatro geladeiras ou freezers estão desligados por falta de comida para armazenar. Na quarta-feira passada, quando a reportagem esteve no local, o terceiro freezer estava cheio apenas de pães cacetinhos, e o quarto tinha algumas salsichas. Ou seja, Marlene e o presidente da entidade, Algenor Luvison, precisariam correr atrás dos doadores mais frequentes para pedir ajuda ou o almoço da próxima semana poderia correr risco.
Além das doações de comida, a Casa da Sopa do Bairro Restinga também aceita roupas, que são distribuídas a quem está na fila ou comercializadas num brechó comunitário para arrecadar os fundos necessários ao pagamento, por exemplo, da energia elétrica (por mês, são cerca de R$ 350 pela luz) e das embalagens para a comida (cada uma custa R$ 0,36). Das doações conseguiram arrecadar 5 mil embalagens, que serão suficientes para cerca de um mês.
— Há dois anos, tínhamos quase 30 doadores que repassavam de R$ 50 a R$ 60 mensais para a entidade. Mas os repasses foram diminuindo até zerar. Então, optamos por fecha a conta — lamenta Luvison.
Despensa vazia
Em Viamão, a Casa da Sopa do Jardim Castelo, fundada há duas décadas, também enfrenta a crise dos armários vazios. Criada pela ex-catadora Dionísia Machado, 74 anos, funciona na frente do lar onde vive Dionísia e a família e atende a quase 80 pessoas cadastradas.
— Este ano, parece que as doações estão diminuindo mais ainda. Primeiro, a gente sempre tinha sobrando. Agora, a gente tem para usar — constata Dionísia.
Nas manhãs de segunda à sexta-feira, Dionísia e moradores voluntários produzem a sopa distribuída em baldes, panelas, panelões e potes plásticos que chegam pelas mãos dos moradores auxiliados. Cada representante de uma família vai ao local receber a doação. Uma única família, por exemplo, chega a ter 14 integrantes.
Praticamente todos os dias, o cardápio é sopa de legumes com fiapos de galinha desfiada para fazer render e dar gosto de carne à alimentação sempre regada com o amor de Dionísia e dos voluntários.
— É mais fácil conseguir doações de legumes do que outros tipos de alimentos. Ainda mais porque está tudo muito caro — explica Dionísia.
Às sextas à noite e aos domingos ao meio-dia, dois grupos voluntários utilizam o espaço de Dionísia para produzir e entregar comida a quem necessita de ajuda.
Nesta semana, quando a reportagem esteve na Casa da Sopa do Jardim Castelo, encontrou a despensa praticamente vazia. No armário improvisado numa sala ao lado do quarto onde dorme a ex-catadora, restavam pacotes de massa e de feijão.
— Aquela comida que vocês viram ali vai dar até a semana que vem. E deu. Depois, não tem mais — apontou Dionísia.
A reportagem, então, perguntou a ela o que faria para mudar a situação:
— É sempre uma incerteza se vai ter ou não. A gente espera doações. Que as pessoas se solidarizem e doem — respondeu a fundadora, que naquela tarde iria com parte dos voluntários à Ceasa para buscar doação de legumes.
Ação estadual também perdeu doações
Nem a Rede de Bancos de Alimentos do Rio Grande do Sul, que atende mais de 300 instituições em todo o Estado, escapou da redução das doações neste ano. Até janeiro, enquanto o Banco de Alimentos manteve ativa na mídia a campanha Doe Alimentos, as doações espontâneas não paravam. A campanha divulgava o site doealimentos.com.br, onde a pessoa escolhe a doação que vai repassar, inclusive cestas básicas, e paga por ela em boleto, cartão de crédito ou bankline. O Banco de Alimentos arrecada o valor e faz a doação a uma entidade. Porém, com o fim da campanha estimulando as pessoas, as doações minguaram.
— Houve uma queda drástica. Quando parou o Doe Alimentos, praticamente, caíram de 80% a 90% o número de pessoas que faziam a sua doação e eram estimuladas a fazer a doação diária—comenta o presidente da entidade, Paulo Renê Bernhard.
Para ele, o problema econômico atual surge de uma série de situações que foram se acumulando durante a pandemia de coronavírus até agora, como o fechamento de empresas e as consequentes demissões, o aumento da inflação e até dificuldades ocasionadas pela guerra no Leste Europeu. O presidente da Rede também salienta que a redução nas doações pode ter influências de duas outras situações: as pessoas doaram mais durante a pandemia e, agora, diminuíram o ritmo e, ainda, há mais entidades auxiliando quem está em situação de vulnerabilidade social, o que poderia também estar pulverizando a solidariedade.
Outro exemplo de queda nas doações citado por Bernhard é a ação Sábado Solidário, em que as pessoas doam diretamente nos centros de compras.
— Se no supermercado, a cada sábado, recebíamos 30 toneladas de doações, hoje, com os mesmos números de voluntários e de pessoas, recebemos 15 (toneladas). Os mesmos doando, não doam a metade do que doavam. O que significa? Um empobrecimento das pessoas — resume Bernhard.