Por Nilton Mullet Pereira
Professor da área de ensino de História da UFRGS
Hannah Arendt criou o conceito de banalidade do mal para compreender uma realidade terrível e angustiante, o nazismo, o Holocausto e o modo como os nazistas lidavam com o fato de terem levado à morte milhares de pessoas. O julgamento de Eichmann, do qual a filósofa realizou a cobertura pela revista The New Yorker, foi chave para que ela compreendesse como o mal havia penetrado de tal forma na vida das pessoas, na Alemanha de Hitler, que se tornara parte do cotidiano, sem despertar qualquer surpresa ou estranhamento.
Arendt compreendeu que Eichmann era uma pessoa como outra qualquer, não era o que se poderia chamar de um monstro impiedoso, poderia ser um pai de família, um homem que vai à Igreja aos domingos e pede a remissão dos seus pecados e, pior, se mostrava um indivíduo com pouca ou nenhuma possibilidade de juízo crítico.
A filósofa compreendeu, então, que o pensamento é o que nos separa, de um lado, de um diagrama que nos leva a realizar ações que se justificam pelo dever ou pela moralidade e, de outro lado, de uma vida que se coloca contra os poderes diagramáticos que afetam nossa subjetividade. Ou seja, pensar é um modo de construir uma relação de liberdade com os diagramas de poder. Pensar nos faz dar um salto para fora, para além das determinações sociais e contra as coações que nos fazem ser parte de um rebanho.
Eichmann abdicou do pensamento, logo, para ele, fazer o mal, mandar pessoas em trens abarrotados para a morte, não lhe causava constrangimento, nem lhe exigia o juízo crítico.
Os conceitos históricos que usamos se propõem a explicar realidades históricas específicas, é verdade, mas o que move este escrito é bem menos a ideia de um tempo linear, que cria sucessivas realidades exteriorizadas umas das outras, e muito mais a ideia de uma multiplicidade temporal. O presente é, portanto, considerado um emaranhado de muitas temporalidades, que se cruzam, se complementam, se estranham. Logo, às vezes, elementos de realidades passadas permanecem, se alongam no tempo, não passam.
O mal e o banal existiram na época do nazismo, na Europa Ocidental, insistem e subsistem, hoje, embora não se possa, de modo algum, supor qualquer semelhança entre o que vivemos hoje e os horrores causados pelo nazifascismo. Essa relação íntima entre o mal e o banal não é um elemento do recôndito da nossa memória, para a qual sempre nos colocamos numa relação de exterioridade. A banalidade do mal não nos é exterior e, pior, não nos é estranha. Ela é parte dos diagramas que, hoje, nos constituem, certamente com estratégias diferentes daquelas observadas por Hannah Arendt no seu tempo, mas com o mesmo potencial de aplacar o pensamento e de tornar a maldade e a banalidade parte dos nossos modos de vida.
O Brasil vive sob uma insuspeitada certeza: o banal se tornou norma e tem intimidado, sem cessar, o pensamento e a complexidade. Junto ao banal, o mal se tornou parte cruel de um cotidiano que apenas observa passar, nas ruas, nos shoppings, nos lares, nos estádios de futebol, uma violência quase inaudita, movida por palavras, armas em punho, tiros e socos. Não quer dizer que tais formas de violência se iniciaram agora, obviamente que não, mas agora elas se tornaram parte de discursos e práticas que, unidas à banalidade, movem partes gigantescas da nossa sociedade para uma espécie de confinamento no interior de diagramas que inibem, ferozmente, a potência do pensamento.
Ler, debater, estudar e escutar têm sido julgados como atitudes de uma intelectualidade tendenciosa e ideológica. Gostar de arte, ciências humanas, teatro e cinema, igualmente. E a tempestade da banalidade do mal se abate de tal forma sobre nós que pensar criticamente é proibido, uma espécie de vício que precisa ser aplacado, seja através da diminuição efetiva das verbas para a pesquisa, seja através dos cortes para projetos culturais vistos como ideológicos ou, ainda, seja através da vigilância, do controle e da perseguição aos professores.
Certamente, Arendt via uma realidade bem diferente da nossa quando pensou no conceito de banalidade do mal, mas muitas das disposições que ela observara em Eichmann e no contexto daquela época não nos são exteriores. Quando uma sociedade renuncia ao pensamento, se deixando à mercê das redes sociais, de fake news, de opiniões negacionistas ou de movimentos antivacina, o fascismo não apenas ronda a porta, como já entrou por ela há muito tempo. E pessoas comuns, que vão e voltam ao trabalho, se vangloriam de empunhar armas e de execrar outras pessoas em função de suas singularidades, sem que isso lhes desperte o pensamento e a crítica.
Vivemos numa época em que o banal e o mal têm superado o conhecimento e a solidariedade; num tempo em que a opinião e a violência têm diminuído as forças do pensamento e do respeito à diferença alheia. Vemos, portanto, reduzir, brutalmente, as possibilidades de vida e de alegria.