O colorido manacá-da-serra, cuja floração abundante em cor de rosa agora atrai o olhar de quem passa pela casa de Vera Cardoni, em Canela, na Serra, não tinha mais do que alguns botões quando o imóvel, antes usado pela família aos finais de semana, virou residência principal da psicóloga. Ainda no começo da pandemia, o local foi escolhido para que Vera ficasse em segurança enquanto o marido, que atua como médico intensivista no Hospital de Clínicas, estivesse na linha de frente do combate à covid-19.
— Este lugar era meu projeto de aposentadoria, mas se tornou minha primeira opção. Nunca tinha ficado mais de 10 dias aqui. Agora, vejo as estações passando, as plantas florescendo. Em determinados momentos, até esqueço que o mundo está explodindo lá fora — afirma a psicóloga, que segue trabalhando a distância desde a mudança.
Mesmo com todos os cuidados, não escapou à doença, que contraiu após uma das visitas do marido. As duas semanas de tratamento foram as únicas na Capital desde 23 de março. Assim que se recuperou, rumou novamente para a casa serrana, de onde só sai para atividades essenciais – e não pensa em partir tão cedo.
A ideia de praticar o distanciamento social na Serra não foi exclusiva da família de Vera. Na percepção de profissionais do setor imobiliário, de parte dos comerciantes e de moradores de cidades como Gramado, Canela, Bento Gonçalves e São Francisco de Paula, a pandemia despertou um movimento migratório para locais que, em outros tempos, serviam de escape apenas aos finais de semana, feriados e nos meses de inverno.
Proprietário da SP Imobiliária, que administra cerca de cem condomínios em Canela, Francisco Stopassola observou uma intensificação na ocupação dos imóveis a partir do fim de março. Demandas por limpeza e manutenção aumentaram, indicando um uso mais frequente dos proprietários vindos de outras cidades e Estados, que antes apareciam esporadicamente.
— Notamos aumento significativo. Ou estão desde o começo (da pandemia) ou estão ocupando por mais tempo, diferentemente de outros anos. Em vez de ser movimento sazonal, foi contínuo — observa.
Enquanto algumas pessoas se estabeleceram, outras têm se revezado entre a cidade e a Serra. Entre as motivações, estão a sensação de segurança de estar em lugares com menos casos da doença – embora há cerca de um mês o contágio tenha aumentado significativamente na região serrana, que entrou em bandeira vermelha – e a possibilidade de conciliar o distanciamento social com a sensação de liberdade, mais perto da natureza.
Crianças
A família de Carolina Meyer é das que endossam a percepção de que há mais gente morando na Serra. Natural de Novo Hamburgo, mas moradora de São Paulo, ela mudou-se provisoriamente com o marido e os quatro filhos para o imóvel de temporada dos pais, em Canela, em abril. A decisão foi determinante para restabelecer a paz entre os trigêmeos, de três anos, e o mais velho, de cinco.
Depois de três semanas de confinamento no apartamento onde vivem na capital paulista, as rusgas cotidianas subiram de patamar:
— As crianças começaram a ter um comportamento fora do padrão. O estresse ficou tão grande que eles já estavam batendo uns nos outros. A gente veio atrás de ajuda. Aqui tem natureza, é bacana — recorda Carolina.
O casal viajou de carro a Canela, com planos de permanecer, inicialmente, por três semanas.
O agravamento da pandemia, aliado à chance de deixar os pequenos gastarem energia a céu aberto na área verde do condomínio, fizeram com que o período fosse estendido – atualmente, não têm data para retornar. A vida nova é mantida do portão para dentro, com saídas para comprar mantimentos.
De modo geral, a movimentação de quem se refugiou na Serra durante a pandemia pouco se reflete nas ruas. Com a maior parte dos imóveis localizados em condomínios residenciais com amplas áreas verdes – e grande parte do comércio atendendo apenas de forma remota –, os novos moradores pouco têm circulado. Sócio-proprietário da Etece Administradora de Condomínios, em Gramado, Léo Francisco da Luz conta que percebeu um aumento progressivo de uso nos cerca de cem residenciais sob sua gestão, quase todos de imóveis de pessoas de fora da cidade.
Ele acredita que as famílias que se estabeleceram no que costumava ser o segundo imóvel já buscavam o isolamento.
— Quem tem alternativa vai para onde, em tese, é mais seguro. As pessoas estão dentro de casa. A gente percebeu que estão ficando mais tempo nos imóveis porque surgiram situações que não percebiam estando um ou dois dias, como a necessidade de serviços de manutenção — relata o administrador, que também observou uma migração de moradores da Serra para o Litoral nesta época.
Cresce a busca por imóveis
O perfil dos novos habitantes de Gramado e Canela foi, em parte, determinado por decisões adotadas pelo poder público nos dois locais. Logo no começo da pandemia, Gramado impôs restrições de acesso e proibiu o aluguel por temporada, além de diversas atrações turísticas. Canela também vetou esse tipo de hospedagem, privilegiando a estadia de quem já tinha casa na cidade. As duas prefeituras dizem não ter indicadores para mensurar a ocupação dos imóveis residenciais neste período.
Moradores de Porto Alegre, Simone Pires Pereira e Gil Ney Galho de Almeida viajaram com a documentação de seu imóvel em Gramado em mãos no começo de março. A casa adquirida há 20 anos virou refúgio para os retiros estendidos do casal, ele do grupo de risco da covid-19. O contato com a natureza – o imóvel fica ao lado de uma área de preservação – virou aliado no distanciamento social.
— Temos ficado pelo menos 10 dias por mês. Aqui, a gente não se preocupa com nada, é mais seguro. Só o fato de ter um pátio já faz toda a diferença — conta Simone, que observou outros vizinhos adotarem os revezamentos entre a Capital e a Serra neste período.
Presidente da Associação dos Corretores de Imóveis e Imobiliárias da Região Nordeste do Rio Grande do Sul (Ascori), que representa 23 municípios, Jocimara Nunes diz que a procura por imóveis na Serra cresceu durante o distanciamento social. A maior parte das buscas, segundo ela, parte de moradores da Grande Porto Alegre e de Estados como São Paulo, Rio de Janeiro e Santa Catarina.
Corretor de imóveis na região há 20 anos, André Behring percebeu dois movimentos. Enquanto pessoas que usavam a casa da Serra como segundo imóvel inverteram a lógica na pandemia, outras começaram a buscar moradia definitiva longe da cidade. Entre os seus clientes, pelo menos 10 mudaram-se para a Serra no período. Pelo menos dois imóveis foram vendidos em razão da pandemia.
Sítio, um dos sonhos de consumo
Além de compradores mais determinados, chamou a atenção de profissionais do setor o perfil dos imóveis buscados: cresceu o desejo por sítios e casas em condomínios com boa infraestrutura. Tadeu Moreira, que atua no mercado imobiliário há nove anos, chegou a dedicar um funcionário exclusivamente para procurar propriedades com essas características. O corretor registrou aumento de 220% nas vendas entre março e junho em relação ao ano passado.
A pandemia foi o empurrão para Jucinéia Collen e o marido, ambos funcionários públicos, tirarem o sonho do sítio próprio do papel. Depois de quatro anos de buscas, o casal comprou um terreno no alto do morro, a 10 quilômetros do centro de Canela. Moradores da zona sul de Porto Alegre, o casal e os dois filhos têm ido periodicamente acompanhar a construção do imóvel, onde pretendem se estabelecer assim que possível.
— Precisávamos de uma mudança, e a pandemia contribuiu, com essa incerteza sobre o futuro. Queríamos ter uma segunda opção. Neste momento, seria uma vida quase normal, sem o aspecto triste de estar isolado — diz Jucinéia.
Comércio nota mudanças no perfil do consumo
A inesperada ocupação dos imóveis, especialmente, em Gramado e Canela, fez com que parte dos comerciantes fosse poupada das consequências da retração do turismo ocasionada pela pandemia.
No mercado há mais de quatro décadas, a Lustro Móveis, cujo carro-chefe são as opções sob medida, temeu perder clientes com a paralisação das atividades e a crise econômica que se anunciava. O que se observou, no entanto, foi uma mudança no perfil: as buscas por móveis a pronta entrega cresceram, garantindo que as vendas se mantivessem entre março e junho.
— A gente percebe que são pessoas que não vieram para ficar em definitivo, porque não querem passar seis meses esperando um móvel ficar pronto. Querem levar para casa para usar — conta o vendedor Cristiano Rabello de Moraes, que acredita que boa parte desse tipo de venda foi impulsionada por pessoas de fora de Gramado.
Demanda
Em Canela, uma das principais referências de quem costumava passar curtas temporadas na cidade surpreendeu-se com um incremento consistente nas vendas. Começou no fim de março, quando Carlos Gallas, proprietário do Gallas Açougue e Mercearia, observou que produtos antes demandados apenas aos finais de semana, como fiambres trazidos de fora do Estado e cortes de carnes especiais, passaram a ter procura também em outros dias.
A percepção se confirmou nas conversas com os clientes.
Segundo ele, os que não puderam se estabelecer levaram parte da família para ficar no imóvel da Serra enquanto honram compromissos em outras cidades. Ele calcula que a movimentação ocasionou um crescimento de 20% no período.
— Achei que não ia vender nada com a pandemia e me enganei. Aumentou a venda até de carne para churrasco, que achei que ninguém mais ia fazer. Mas tenho pé no chão de que não vai ficar assim. Acho que, quando todo mundo for embora, virá uma recessão — diz Gallas.
O local, único comércio com movimento identificado pela reportagem na quinta-feira da semana passada, é dos poucos lugares que Vera Cardoni frequenta semanalmente para comprar mantimentos. Se depender dela, é possível que a debandada esperada pelo comerciante não se confirme:
— Estive em Porto Alegre quando fiquei doente e achei sufocante. A cidade ficou opressora. Se continuar assim, acho que fico por aqui.