Quatro meses após o início das medidas de distanciamento social no Rio Grande do Sul, casais com a possibilidade de trabalhar direto de casa estão experimentando um novo estilo de vida em família. Mais do que improvisar um espaço de trabalho, surgiram os desafios de cuidar da casa, do emprego, da vida do casal e dos filhos em tempo integral. Com isso, há relacionamentos em que foi percebida dificuldade de se manterem neste período de pandemia de coronavírus. Outros já estão tirando lições desta experiência surgida do dia para a noite.
Segundo a psicóloga e terapeuta de família e casais Ana Golin, os conflitos nos relacionamentos a dois neste período de confinamento infelizmente estão ocorrendo com certa frequência. Ela explica que, a partir da pandemia de coronavírus, as pessoas estão demonstrando maior ansiedade, insegurança, medo, o que aumenta a sensação de vulnerabilidade. Ana ainda faz um alerta: é importante que as pessoas estejam atentas a mudanças no humor ou no comportamento, pois características prévias de ansiedade ou depressão podem se potencializar neste momento de estresse e de hipervigilância para evitar a contaminação.
— As pessoas precisaram fazer ajustes em suas vidas devido às consequências do distanciamento social. Estão mais tempo juntas e se deparando com desafios diferentes, inclusive relacionados ao aumento do tempo de convivência em seus lares. É com o parceiro ou a parceira que alguns esquemas podem se ativar, causando um mal-estar na relação. Muito provavelmente lidaremos com consequências emocionais da pandemia a médio prazo. Já é possível verificar um aumento da procura por atendimentos na prática clínica, tanto individuais como de casais e famílias — relata a psicóloga.
Atualmente, o aumento das situações conflituosas entre o casal, indica Ana, é causado por sentimentos vividos ainda na infância e que são reeditados na convivência a dois. É como se o casal entrasse numa máquina do tempo. Neste momento de maior incerteza, as sensações mais negativas e de perigo da infância, vividas com as figuras parentais, poderão ressurgir e colocar a relação em risco. Como se a pessoa, com aquela figura amorosa no momento atual, se teletransportasse para aquele momento mais infantil em que sensações de medo, privações, abandono e vulnerabilidade podem ser reforçadas pelo(a) parceiro(a).
É preciso enfrentar este momento, ensina a psicóloga. É importante que cada indivíduo se conecte com suas emoções, percebendo-as e validando-as. Talvez, destaca a psicóloga, seja necessária ajuda especializada até para reconhecer e nominar os sentimentos envolvidos.
No segundo estágio, depois de compreender como está lidando com o momento (no caso, as consequências do distanciamento social), a pessoa deve compartilhar com o companheiro o que está sentindo, falar sobre a sua vulnerabilidade e seus medos e tentar se conectar com os sentimentos do(a) companheiro(a). É importante demonstrar ao outro que há um empenho em melhorar a situação
— A sensação de incerteza com relação ao futuro acaba gerando medo e insegurança. Então, tentar manter o ambiente pacífico, ser gentil com as palavras, na medida do possível, também ajuda a passar pelas dificuldades. Sobrevivendo a esta situação, a relação tende a ficar mais fortalecida — afirma a especialista.
Momento para reconectar a família
Foi preciso uma parada inesperada, por conta da pandemia de coronavírus, para a jornalista Letícia Souza , 43 anos, e o vendedor externo Sandro Pagano, 45 anos, encontrarem mais tempo para serem um casal. Juntos há 10 anos, são pais de Antonella, seis anos. Com mais tempo em casa, há 45 dias, decidiram aumentar a família: adotaram a vira-latas Lalá, de três meses.
Letícia
"Os primeiros dois meses foram os mais difíceis. Já vínhamos com uma rotina pesada e enfrentando um relacionamento que estava bem desgastado. E quando se está em um momento de crise, com inseguranças e medos à flor da pele, passando 24 horas por dia juntos, pequenas diferenças podem se tornar um verdadeiro tsunami.
Nunca tivemos um espaço específico para home office. No início, foi mais difícil manter a rotina. A cada momento, trabalhava em um local diferente: da cozinha para a sala, da sala para o quarto. Com o tempo, adaptamos um espaço no quarto do casal, onde agora é a estação de trabalho e é utilizada para as aulas remotas da Antonella.
Uma dificuldade foi fazer com que a pequena entendesse que, apesar de estarmos perto, nem sempre eu poderia estar disponível para brincar, por exemplo. Agora, quando estou na minha estação de trabalho, ela já pergunta se terminei e deseja 'trabalha bem, mamãe'. É uma rotina que exige disciplina e foco. Ambas estamos amadurecendo.
Trabalho das 8h até as 18h, e paro para o almoço, o lanche e quando preciso atender a Antonella. Também a acompanho nas aulas remotas, que são diárias. Quando o Sandro não está em função da casa – já reformou de tudo um pouco na quarentena –, dá mais atenção para a filha. Os dois brincam muito, e estes têm sidos momentos bem especiais.
Com o tempo, conseguimos estabelecer uma rotina para os três (agora quatro, com a Lalá). O relacionamento também está mais leve. O tempo foi importante: com mais horas em casa e sem o estresse do trânsito, conversamos mais, conseguimos nos entender, cuidamos do nosso espaço e desenvolvemos um novo olhar para a nossa relação e para a nossa família. Tudo é um processo.
Um dos grandes aprendizados é que devemos cuidar mais das pessoas e ter mais empatia. E que precisamos praticar o autocuidado sempre. Quando a gente muda, o mundo se transforma. E digo isso pois é o que estou vivenciando. Acho que novos hábitos, processos e valores estão se solidificando e darão o tom do momento pós-pandemia. Também vejo que o conceito de unidade vem ganhando força e que, apesar da distância física, as relações e conexões estão se fortalecendo. Isso é muito especial."
Dicas da Letícia
- Paciência, resiliência e respeito. Para que a relação resista, mais do que nunca é preciso respeitar o espaço do outro.
- Nada de comparação e julgamentos. Cada relação é única. Cultive momentos juntos: seja vendo um filme ou arrumando o jardim. O companheirismo é essencial para sairmos mais fortes desse período.
Sandro
"Sou muito hiperativo, e ficar em casa direto tem sido o mais difícil. Acho que o fato de morarmos em casa, e não em apartamento, ajuda bastante. Sempre tenho algo para fazer. Outra dificuldade foi o fato de o meu trabalho ser externo e, pelo momento, não poder ser realizado. Isso é muito estressante. Mas, com a pausa no trabalho, tenho mais flexibilidade de horário e estou conseguindo acompanhar muito e mais de perto a minha filha. E esse é o lado bom.
Tivemos um primeiro impacto no começo da pandemia. Agora, já com mais tempo, estamos conseguindo nos relacionar melhor. Foi uma mudança positiva para a família.
Desta experiência nova, aprendi que precisamos ser mais humanos e cuidadosos. Acho que estamos criando novos e importantes hábitos que seguirão conosco."
Dicas do Sandro
- Converse mais e se esforce para entender o ponto de vista do outro.
- Tente criar possibilidades de passar um tempo juntos, sozinhos, apesar da rotina e dos filhos. Isso é essencial.
Valorização da companhia
Casados há 11 anos, a publicitária e produtora eletrônica Lucirene Barros, 41 anos, e o gerente de projetos em TI Nelson Tiago Müller, 40 anos, já tinham a experiência do teletrabalho. A partir da pandemia, porém, reforçaram o tempo juntos em casa. Neste período, as mudanças percebidas pelo casal foram mais profundas do que apenas as trocas das cadeiras do escritório por poltronas mais confortáveis para as oito horas diárias dedicadas às profissões.
Lucirene
"Foi bem complicado no primeiro mês e chegamos a nos desentender algumas vezes, até montarmos e nos adaptarmos a uma rotina que funcionasse para os dois, já que trabalhamos em áreas completamente diferentes.
Conciliar as reuniões e ligações também foi um desafio, pois dividimos o escritório. Em vários momentos, um dos dois vai para outra peça da casa para não atrapalhar o outro ou porque ambos estão em videochamada ou ligação ao mesmo tempo.
Demorou um pouco para nos acostumarmos a estarmos 24 horas juntos, sem interagir com outras pessoas presencialmente e sair de casa. Eu sou muito agitada e senti muita falta do dia a dia na agência.
Temos horários de trabalho um pouco diferentes. Por isso, senti dificuldade de organizar as tarefas do dia de trabalho, com os horários de refeição e intervalos dos dois. Assim como me adaptar a reuniões remotas, o uso de novas ferramentas de trabalho, que para ele já eram comuns, e organizar o horário para fazer exercícios.
Procuramos acordar nos mesmos horários como se fôssemos sair para o trabalho. Normalmente, o Nelson faz o café e eu, o almoço. A janta depende do dia e quem se libera antes, mas tem dias que inverte tudo por conta dos horários de trabalho.
Com tudo isso, ficamos muito mais próximos e conseguimos ver as dificuldades e as atividades de cada um no dia a dia. Até a nossa alimentação melhorou, e estamos usando menos as telentregas.
Desta experiência, aprendi que somos muito mais tolerantes e amigos do que imaginávamos. Conseguimos fechar 120 dias em trabalho remoto sem grandes atritos e mais unidos que nunca, respeitando e entendendo o espaço do outro."
Dicas da Lucirene
- Estabeleça uma rotina e tenha espaços definidos para cada um. Respeite esses espaços.
- Converse e sempre fale quando algo te incomoda.
Nelson
"A empresa onde trabalho já oferecia um sistema em que era possível trabalhar de casa alguns dias por semana. A novidade agora é a frequência.
Antes, eu tinha mais tempo em casa. Então, a roupa e a louça já ficavam mais comigo. O almoço, porém, não era tão bom como é atualmente. Cozinhar para dois e almoçar juntos é muito melhor.
Depois de quatro meses juntos 24 horas, certamente estamos mais unidos. Aprendemos a valorizar os dias juntos e as atividades do outro. Rimos de coisas bobas e nos apoiamos mais. Aprendi que temos que ter um espaço em comum e outro individual. Vamos valorizar ainda mais os momentos com família e amigos."
Dicas do Nelson
- Ria bastante dos contratempos que acontecem.
- Nem sempre as coisas serão flores, mas as grandes histórias não são perfeitas, são feitas de percalços e adversidades. E isso torna as coisas mais emocionantes.
Mudanças profundas
A professora universitária Ionara Rech, 44 anos, e o analista de TI Francisco José Paz, 42 anos, de Porto Alegre, descobriram uma nova realidade na vida de casados, depois de 14 anos juntos e com os filhos Elias, quatro, e Miguel, sete anos.
Como muitos, esta é a primeira vez que o casal está em teletrabalho. Para isso, os dois precisaram reinventar os espaços da própria casa. A peça multiuso, que fazia as vezes de escritório, quarto de visita e sala de TV, ficou para Ionara, enquanto Francisco se instalou na mesa da sala de jantar.
Ionara
"De todas as dificuldades deste período, acredito que as principais foram o estabelecimento de uma rotina do trabalho de cada um de nós, juntamente com as tarefas da casa e as demandas das crianças em relação à escola e a cuidados e atenção.
Nos primeiros meses, abrimos mão da faxineira e ficamos com todo o trabalho da casa. Foi bem desgastante, mesmo já tendo uma divisão de atividades desde antes da pandemia. O Chico gosta e sabe cozinhar, então ele cuida disso e eu fiquei com a parte de roupas e faxina. Dividimos a organização. Procurei fazer nos finais de semana, mas não estava mais dando conta. Como vimos que a situação continuaria, a faxineira foi voltando aos poucos.
Em relação às crianças, a dificuldade foi estabelecermos e seguirmos com uma rotina no turno da tarde em casa com tempo para brincar, ver desenho e fazer as atividades escolares. Fizemos diversos ajustes nesta rotina, em função dos nossos trabalhos. Era um combina e descombina com eles o tempo todo.
Francisco tem uma rotina que é diurna e a minha é mista, pois tenho aulas em três noites da semana. Procuro dar conta da casa e das crianças pela manhã e ele fica com essa responsabilidade à noite, principalmente quando tenho aula. À tarde, procuramos nos organizar em função das reuniões e aulas das crianças.
Com o trabalho dentro de casa, as demandas surgem (muitas por WhatsApp, por exemplo), e a gente acaba respondendo em qualquer horário e em qualquer dia. Cheguei a fazer reunião via Zoom com alguns alunos num domingo pela manhã para resolver a situação de um trabalho de uma das turmas. Meus filhos já “invadiram” o espaço onde eu fico no momento das aulas ou de reuniões, chorando ou solicitando alguma coisa. Como o Francisco utiliza a sala de jantar, com frequência a dinâmica da casa e das crianças invade o trabalho dele. Essa confusão do momento de trabalho e de família ocorreu em alguns momentos neste período, por mais que tentássemos separar. O que deu para perceber é que estamos todos no mesmo contexto e as pessoas entendem a situação e se apoiam.
Assumi o acompanhamento das aulas e atividades do Miguel, e o Francisco, do Elias. O Miguel está no segundo ano e ainda requer acompanhamento e incentivo. Já o Elias precisa ser muito mais acompanhado. Há 15 dias, minha quantidade de trabalho aumentou e decidimos contratar uma professora de educação infantil, que foi professora deles na escola anterior.
Em alguns momentos, sei que meus filhos ficam “abandonados” em casa, geralmente em frente à TV, em função de estarmos envolvidos com o trabalho. Mas, em outros, em horários impensáveis antes da pandemia, sei que eles estão tendo a mãe e o pai bem próximos. Após o almoço, gosto de ir para os fundos da casa comer uma bergamota e eles me acompanham, bem felizes. Assim como podemos trocar um abraço, um beijo e um chamego no meio da tarde.
Ao longo desta pandemia, percebi que não é necessário estarmos fisicamente o tempo todo na empresa. É possível trabalhar de casa em alguns momentos e atividades. Há ganho de tempo de deslocamento, de estresse no trânsito. E, principalmente, o ganho de atenção e convivência com os filhos, que não tem preço. Está sendo desafiante, mas tem lições importantes para repensarmos nossa rotina e fazer mudanças para melhor."
Dicas da Ionara
- Tenha paciência e muita conversa. Peça desculpas, respire fundo e refaça combinações quando necessário.
- Procure estabelecer limites para o trabalho e para a casa. Não fique disponível 100% do tempo para o trabalho. Tenha um espaço para você, para a família e para a casa.
Francisco
"Durante o distanciamento social, ficamos mais unidos. Porém, mais cansados e, em alguns momentos, estressados. Agora, tivemos que, de fato, assumir integralmente a educação de nossos filhos, contando menos com o apoio da escola.
Me sinto como equilibrando pratos e tendo que trocar o contexto de forma muito mais rápida. No geral, a carga diária acaba sendo maior, pois precisamos gerenciar as atividades do trabalho e, também, as dos filhos. Eles precisam da atenção dos pais, que é necessária.
Das dificuldades, a virada de chave é quando estou concentrado no trabalho ou em alguma reunião e o filho pede atenção. Isso tira completamente o foco e acabo não atendendo direito o filho e também não participando de forma adequada da reunião.
Pela manhã, acordo mais cedo e deixo o café pronto para todos. Sento para trabalhar e, quando as crianças acordam, geralmente minha esposa faz as rotinas básicas com nossos filhos. Por volta das 11h30min, preparo o almoço acompanhado de uma música dos anos de 1980 ou 1990, que gera uma vibe muito boa para o momento do almoço. Nos dividimos na hora de lavarmos a louça e guardarmos as comidas.
No início da tarde, acompanho as aulas do Elias. Depois, os dois podem ver desenho ou brincar até a professora que contratamos chegar. Ela acompanha as aulas do Miguel e faz atividades com o pequeno. Jantamos por volta das 19h, enquanto a Ionara dá aulas online. Fico responsável pela rotina de banho, pelos temas e pelas brincadeiras, até colocá-los para dormir. Quando minha esposa não tem aula, dividimos essa rotina.
Desta experiência, ficará a necessidade de maior atenção às crianças, a aproximação da família e o carinho dos filhos. A necessidade de sermos pais educadores e a percepção do aconchego de nosso lar, explorando mais coisas que antes a rotina corrida não nos permitia."
Dicas do Francisco
- Não deixe de dar atenção aos filhos, às conversas, às coisas simples do dia a dia. Dê um abraço carinhoso durante uma reunião ou uma aula. Foque sempre no essencial.
- Tente achar um momento para relaxar, coloque mais músicas no seu dia. Dance com seus filhos.