No domingo passado (12), depois de um ano acamado em casa com uma série de problemas de saúde, morreu em Porto Alegre o pai de santo e babalorixá Derly Antônio da Rosa, 63 anos.
— Ele faleceu em uma época péssima — lamenta Tatiana da Rosa Lemos, 42 anos, filha de Derly.
Perder uma pessoa querida é sempre difícil, mas, como reconhece Tatiana, o momento atual tornou as despedidas ainda mais dolorosas. Em decorrência da pandemia de coronavírus, autoridades municipais, estaduais e federais publicaram decretos e normas técnicas que estabelecem uma série de restrições para velórios e sepultamentos, como forma de impedir aglomerações e dificultar a transmissão do vírus. Das recomendações constam velórios curtos, com poucas pessoas e caixão lacrado.
Muitos enlutados sentem que um adeus nessas condições não é completo. É o caso de Tatiana, que protagonizou um ato de rebeldia durante o breve velório do pai, ocorrido na tarde de segunda-feira. Desaparafusou as borboletas e levantou a tampa do caixão para realizar um ritual religioso que envolveu romper as guias de proteção que o pai costumava usar ao redor do pescoço e colocá-las junto ao corpo.
— Somos de religião de raiz afro e temos de seguir alguns rituais. É muito importante arrebentar as guias e que a pessoa seja enterrada com elas. A pessoa que falece tem de levar suas coisas com ela. Informaram que não podia fazer, que o caixão tinha de ficar lacrado. Para ser bem sincera, abri o caixão por minha conta e risco. Porque para o meu pai, isso era muito importante. Era muito necessário. Eu tinha de fazer. E sabíamos que a morte dele não havia sido por coronavírus — afirma Camila.
Quando Derly foi sepultado, as restrições impostas aos velórios estavam ainda mais rigorosas, por causa de uma liminar da Justiça gaúcha que limitava as cerimônias a três horas, com no máximo 10 pessoas na capela. A despedida tinha de ser diurna e com o caixão fechado. Obtida pelo Sindicato dos Estabelecimentos de Prestação de Serviços Funerários (Sesf) do Rio Grande do Sul, a liminar caiu na quarta-feira, mas na prática a situação não se alterou muito: decretos municipais e resoluções dos órgãos de saúde mantêm recomendações parecidas.
Embora tenha realizado o ritual com as guias, Tatiana ressente-se porque muitos dos desejos da família e do morto não puderam ser realizados por culpa do coronavírus. A esposa, Maria Dolores da Rosa, 63 anos, cuidou de Derly durante a enfermidade e queria dar-lhe o último banho e vesti-lo, mas foi impedida por causa das regras de manuseio dos corpos estabelecidas durante a pandemia. Além disso, poucas pessoas, cerca de 30, compareceram ao cemitério, por causa do distanciamento social vigente, da brevidade do velório e de sua realização diurna.
Dos 15 netos, só a mais velha compareceu. Os outros, ainda na infância, ficaram em resguardo, contrariando o que o avô desejava. Além disso, apenas 10 pessoas podiam entrar na capela de cada vez. Quando um frade encomendou o corpo, só entraram a mãe de Derly, a esposa e os cinco filhos. Eram oito pessoas, somando os mais próximos e o religioso. Para não favorecer ninguém com as duas vagas restantes, irmãos, genros, noras, sobrinhos e amigos do falecido ficaram do lado de fora.
— Esse momento de encomendar a alma, que é o mais importante, foi o pior, o que a gente mais sentiu. Não foi a despedida que a gente queria fazer — diz Tatiana.
Outra família que não conseguiu realizar o sepultamento com a grandiosidade desejada foi a de Zani Quadros de Oliveira Moraes, que morreu em 3 de abril, aos 106 anos. Embora o número de irmãos, filhos, netos, bisnetos e amigos fosse grande, a decisão foi realizar uma cerimônia breve no Crematório Metropolitano, com um punhado de parentes. Estavam lá uma filha de Zani, Zeny Oliveira de Moraes, 85 anos, mais alguns netos e bisnetos, totalizando sete presentes.
— Ofereceram uma cerimônia ao ar livre, de quatro horas, mas preferimos que as pessoas ficassem em casa, vendo pelo celular, até porque temos muitos idosos na família. Achamos melhor cuidar das pessoas. Ficamos todos muito sentidos, porque não era a cerimônia de despedida que ela merecia. A pandemia nos limitou. Mas combinamos de fazer uma linda missa em homenagem a ela, com todos reunidos, quando isto passar — diz uma das netas que participaram da despedida, a cirurgiã-dentista Betinne Moraes Erdmann, 51 anos.
Orientações às famílias
Gerci Perrone Fernandes, presidente da Associação Sulbrasileira de Cemitérios e Crematórios e diretor do Cemitério Parque Jardim da Paz, reconhece que é difícil para as famílias não se despedirem dos mortos com toda a pompa e conforme as tradições, mas ressalta que cabe aos estabelecimentos seguir as normas e orientar as pessoas.
— Existem famílias que são grandes e não podem estar juntas nessa hora importante, para evitar aglomerações. É bem complicado. Também é brabo dizer aos familiares que não se pode abrir o caixão. Porque aquela é a despedida final, o último momento em que se vê uma pessoa querida. No caso de morte por covid-19, é mais difícil ainda, porque não acontece o velório. É sepultamento direto. Além da perda, não dá para se despedir, não dá para receber o carinho dos amigos. Alguns entendem, outros não — observa Fernandes.
Fabrício Coutinho, diretor do complexo funerário Jardim da Memória, de Novo Hamburgo, afirma que tem sido doloroso para as famílias lidar com os velórios rápidos e quase sem gente. Para minimizar essa perda, o estabelecimento oferece transmissão online da despedida.
— Às vezes, a pessoa não vai no casamento do amigo, mas vai no velório do pai do amigo. É um momento em que todo mundo se obriga a estar presente. É a hora do abraço caloroso. É isso que se está perdendo. É doído — diz.
Para os casos de morte por covid-19, em que nem o velório expresso está liberado, o Jardim da Memória desenvolveu um serviço especial, lançado nesta semana, mas ainda não utilizado. É um velório simbólico, sem corpo, mas com a presença de objetos significativos do falecido sobre um altar, além de outras decorações que a família deseje, como porta-retratos.
— Tem de pensar pelo lado da humanização, no filho que não vai poder ver o pai nem chorar a morte dele. Atendemos alguns casos de covid-19 e percebemos que as pessoas querem ter um momento para chorar — revela Coutinho.
Outra proposta do Jardim da Memória é uma homenagem póstuma, um cerimonial de despedida a ocorrer depois da pandemia. O Grupo Cortel, que mantém 10 cemitérios, cinco deles com crematório, também sugere cerimônias póstumas, como se fossem uma missa de sétimo dia, na qual pode estar presente a urna com as cinzas da pessoa que morreu.
— Ser impedido de fazer o velório de um ente querido pode trazer um trauma. Por isso, vamos nos adaptando — diz Rafael Azevedo, diretor do grupo.
Quando a morte não for por covid-19 e o velório ocorrer com limitações, o grupo oferece a transmissão online, sem custos adicionais. A demanda pelo serviço aumentou 70% durante a pandemia. Além disso, todos os estabelecimentos do grupo passaram a disponibilizar velórios externos, com a instalação de tendas ao ar livre, garantindo arejamento e maior segurança contra a infecção pelo vírus.
— Ver velórios esvaziados, com duas, três pessoas, entristece, mesmo a gente sabendo da história por trás — reconhece Azevedo.