Desenhada neste momento no Ministério da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos (MMFDH), a política pública de incentivo à abstinência sexual que a ministra Damares Alves planeja pôr em prática no Brasil para reduzir a gravidez na adolescência já foi aplicada em outros países, como Estados Unidos e Uganda.
Especialistas criticam a medida porque, historicamente, governos que incentivaram a abstinência sexual silenciaram na hora de orientar para o uso de métodos contraceptivos. Para a comunidade científica internacional, a melhor prática é fornecer informação e métodos contraceptivos – tanto para meninos, quanto para meninas.
— Historicamente, a proposta de abstinência é ligada à fidelidade, portanto se opõe à política de ampla distribuição de preservativos — diz médico infectologista Rodrigo Hallal, que já trabalhou na área do Ministério da Saúde responsável por combater infecções sexualmente transmissíveis (ISTs).
Em posicionamento nacional na terça-feira (28), a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) reiterou “o posicionamento de diferentes instituições científicas internacionais que, após a análise de estudos publicados a respeito da eficácia de programas de educação sexual, apontam graves falhas científicas e éticas da abordagem para abstinência sexual exclusiva”.
Veja as estratégias em outros países:
Chile
Questionado via Lei de Acesso à Informação (LAI) sobre pesquisas que comprovem a eficácia da abstinência, o ministério de Damares Alves informou que a política pública ainda está em construção e que a estratégia “não irá conflitar com as políticas atualmente existentes de educação sexual, do uso de preservativos ou de outros métodos contraceptivos. Será complementar”.
Na nota, o ministério traz o link para um site no qual um texto lista três estudos chilenos que se referem à abstinência sexual como uma forma de prevenir a gravidez na adolescência.
Os três artigos são, na verdade, um único estudo que demonstrou, no fim da década de 1990, a eficácia do programa de abstinência Teen Star, em uma escola feminina no Chile. O resultado mostrou que as jovens engravidavam menos após a intervenção. GaúchaZH encaminhou os textos para a análise de especialistas. O consenso é de que a pesquisa é fraca.
Apesar de acompanhar um número grande de voluntárias (mais de 1,2 mil), os pesquisadores analisaram uma única escola com somente estudantes meninas, critica Cristiane da Silva Cabral, professora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e especialista no tema. Ela diz que o resultado é pequeno e oposto a grandes estudos feitos ao longo dos anos no mundo.
— Os pesquisadores não especificam se as meninas iniciaram a vida sexual mais tarde, nem se houve uso de métodos contraceptivos. Não levaram em conta outros fatores, então a gravidez precoce pode ter diminuído simplesmente porque elas transaram e usaram contracepção. A literatura científica mostra que a abstinência sexual não funciona. Países em desenvolvimento, como Uruguai e Argentina, não adotaram abstinência sexual e tiveram sucesso em reduzir a gravidez na adolescência.
O pediatra Danilo Blank, responsável por julgar durante 25 anos a qualidade de artigos científicos enviados para publicação no Jornal de Pediatria, da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), salienta que a pesquisa é antiga, feita na década de 1990, e estranha o uso de um estudo realizado há tanto tempo.
— Todos os artigos reconhecidos chegaram à conclusão de que a abstinência pura e simples não tem valor para prevenir a gestação na adolescência. Isso é um consenso muito estabelecido. É muito estranho puxarem artigos de mais de 15 anos atrás — comenta o médico, também professor de Pediatria na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
O médico infectologista Rodrigo Hallal diz que a discussão sobre a eficácia da abstinência sexual como política pública “não está no campo do debate científico, e sim religioso”.
— O estudo chileno compara a abstinência sexual com nenhuma intervenção. Não dá conta de outros elementos que possam contribuir e nem traz análise do perfil dos escolares. A qualidade da evidência tem fragilidade muito grande — diz Rodrigo Hallal, que também integra a Sociedade Brasileira de Infectologia (Sbin).
Nem o próprio Chile defende a abstinência sexual. O governo, após analisar 25 estudos sobre métodos de proteção contra o HIV, destacou que a camisinha é o método com mais resultados e que, “quanto à promoção da monogamia e da parceria única, os resultados são discretos”. O Ministério da Saúde do Chile diz que o efeito da promoção da abstinência sobre jovens gays “é nulo” e, sobre heterossexuais, “ainda que exista potencial de êxito, há também um risco importante de que as intervenções não alcancem impacto ou de que seja de baixa magnitude”.
De acordo com o governo chileno, os estudos indicam que a abstinência tem mais potencial nos países pobres do que nos ricos. “É chamativa a ausência total de efeito do programa escolar de alcance nacional levado a cabo pela União Europeia”.
Estados Unidos
O país é pioneiro em políticas públicas de incentivo à abstinência sexual desde 1981, como forma de combater a epidemia de HIV e Aids. A estratégia recebe o nome de ABC (abstinência, seja fiel e use camisinha, em tradução). Por lá, a comunidade médica também é contra a medida, após uma série de estudos mostrar que o incentivo à abstinência está relacionado ao menor uso de camisinha. A Sociedade para Saúde e Medicina Adolescente dos EUA emitiu nota em 2017 (já sob o governo Donald Trump) na qual diz que políticas de abstinência “não são baseadas na ciência” e “minaram” a educação sexual dentro do país ou em outras nações, quando os EUA interviram (caso do combate ao HIV na África).
O órgão afirma que “políticas governamentais baseadas em promover exclusivamente a abstinência até o casamento são problemáticas do ponto de vista científico e ético”. A entidade recomenda que o governo deixe de alocar verbas para esse tipo de estratégia e, no lugar, foque em educação sexual completa. O texto diz ainda que estratégias como essa “proveem informação incompleta” sobre educação sexual.
No país, a prática foi rebatizada com o nome de “evasão de risco sexual”, graças ao esforço de Valerie Huber, ex-diretora da Associação Nacional de Educação em Abstinência Sexual (Ascend) que largou o posto para ser assessora de políticas no Ministério da Saúde do governo Trump. Em dezembro, Damares Alves organizou evento em Brasília sobre gravidez na adolescência no qual palestrou a atual presidente da Ascend, Mary Anne Mosack.
Em posicionamento nacional divulgado nesta terça-feira (28), a Sociedade Brasileira Pediatria destaca que os Estados Unidos já gastaram bilhões de dólares na busca de alternativas. “E o que ensina a experiência americana? Estudos publicados a respeito da eficácia de programas de educação sexual naquele país demonstraram que estratégias combinadas são mais efetivas do que aquelas isoladas. Ou seja, os resultados evidenciam efeitos favoráveis das abordagens abrangentes com redução do risco em todos os indicadores”, diz a SBP.
Como política para o Exterior, a abstinência sexual foi usada e depois descartada no governo de George Bush durante o programa PEPFAR, um fundo que investiu, de 2004 a 2013, quase R$ 6 bilhões no combate a infecções por HIV na África sub-sahariana.
Durante um período, o governo norte-americano chegou a incentivar a população local a adiar o sexo para evitar a contaminação. Anos depois, no entanto, o governo voltou atrás após concluir que a prática surtia pouco efeito. Após analisar os efeitos da orientação à abstinência em 22 países africanos onde os Estados Unidos agiram, a prestigiada Universidade de Stanford conclui que a técnica foi ineficaz em reduzir os índices de gravidez na adolescência, o número de parceiros e mesmo em atrasar a idade de iniciação sexual.
Uganda
No país, que tem 42 milhões de habitantes e é referência nas quedas de infecção por HIV, a abstinência sexual é a principal política de saúde pública para jovens. O presidente Yoweri Museveni é evangélico e manda no país desde 1986. A primeira-dama chegou a ser ministra da Educação.
Em Uganda, 24% das adolescentes engravidam, uma das taxas mais altas do continente africano, conforme o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Desde os seis anos, crianças aprendem na escola que “esperar” é uma boa opção e que a virgindade deve ser preservada. A abstinência é reforçada em igrejas cristãs e templos muçulmanos, e recebeu financiamento do programa norte-americano PEPFAR.
O governo afirma que o sucesso na luta contra o HIV (cuja prevalência caiu de 15% da população, em 1992, para 6% em 2002) se deve à abstinência, mas a avaliação não tem consenso. Críticos afirmam que a disseminação de informações sobre o HIV ajudou e que a África em geral teve sucesso em combater a epidemia.
Em diagnóstico sobre Uganda, o Unicef não recomenda a abstinência sexual como método para combater o casamento infantil ou a gravidez precoce. Dentre os conselhos, estão assegurar a permanência na escola, a educação sexual e o acesso a métodos contraceptivos.