O impacto do discurso de ódio nas redes sociais e da intolerância nas relações humanas. A importância de encontrar um propósito no trabalho e aprender que a felicidade não é um estado, tampouco é constante. Essas questões tão fundamentais e complexas são tratadas de forma direta e didática pelo escritor Mario Sergio Cortella, que desponta como um dos mais conhecidos filósofos brasileiros.
Com mais de 1 milhão de livros vendidos, o paranaense nascido em Londrina lança seu 36º livro, A Sorte Segue a Coragem!, no qual é taxativo: coragem não é ausência de medo, é a capacidade de enfrentá-lo. O professor-titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), onde atuou por 35 anos, deu aulas de ciências da religião e também teve uma experiência de três anos como monge. Aos 63 anos, é avô, com dois netos.
Apesar das críticas que faz às redes sociais, que "permitem a idiotice vir à tona", interage bastante com elas. São mais de 1,3 milhão de curtidores em sua página no Facebook e 30 mil inscritos no canal de Youtube.
Em entrevista por telefone, Cortella falou sobre diversos temas, desde sorte, eleições, confrontos e a busca por felicidade. Confira:
Presenciamos um aumento dos discursos de ódio, principalmente nas redes sociais. Estamos mais intolerantes?
Não, estamos mais em condições de fazer com que a intolerância, que já tinha seu lugar, possa vir à tona de maneira ampliada. A perspectiva de rejeição a quem não pensa ou não é como eu já existia. E hoje nós temos uma tecnologia que tem inúmeros elementos benéficos, mas que também tem essa possibilidade de fazer com que as pessoas tenham a capacidade de reação de modo intempestivo, sem reflexão, sem raciocínio, dada a velocidade da comunicação. Hoje essa intempestividade favorece às vezes a perda de reflexão, de raciocínio e até de bom senso.
E esse seria um dos maiores perigos das redes sociais?
Eu acho que elas são magníficas em relação a modos de comunicação, capacidade de agregar forças, de estruturar organização de pessoas em torno de ideias e projetos, elas são uma grande fonte de entretenimento. Mas de modo algum elas podem ser olhadas como isentas de alguns malefícios. Dentre eles, permitir que a pessoa, que não necessariamente é marcada por uma capacidade intelectual de ser tolerante, tenha um palanque para se manifestar. Hoje, não só há possibilidade de vir à tona aquilo que é benéfico e bonito, mas também a idiotice. Obviamente, a questão não é da tecnologia em si, mas ela carrega a possibilidade desse tipo de efeito colateral. Que também terá de ser testado, ele é muito novo entre nós, é uma coisa que ainda não pegou nenhuma geração por inteiro na nossa sociedade.
E esses impactos das redes ganham mais dimensão em um ano como esse, de eleições?
Sim, eles aparecem todas as vezes que temos situações em que nossas posturas são postas à prova. Isso vale em várias situações. Por exemplo: você só tem uma briga mais intensa no condomínio quando tem reunião de condomínio (risos). Você só tem situação em que há possibilidades de rusgas, de quebra da convivência, quando alguma coisa terá de ser decidida coletivamente. Então um ano como 2018 é um ambiente mais favorecedor dessa possibilidade, porque temos de tomar posição. E quando você tem de tomar posição relacionada à política, à religião, ao esporte, isso fica algo muito fervido em nosso cotidiano. Não é algo tão fácil.
E pode acabar em conflito...
Pode acabar em conflito, mas que não é necessariamente negativo. O problema é se acabar em confronto. Porque o conflito é importante. Uma democracia, uma família, uma relação amorosa, tem conflitos. Conflito é divergência de postura de ideias, e a intenção do conflito é geração do consenso. Já o confronto é a degeneração do conflito, numa busca de anular a outra pessoa, de excluí-la. Por isso o conflito é sempre bem-vindo, o confronto não. Por isso uma eleição precisa ser inteligente. Quem a vencer em 2018 precisa ser capaz de compor a paz social e impedir que o confronto venha à tona. Eu gosto muito de um exemplo que acho que serve para o Brasil: Abraham Lincoln, quando foi eleito nos Estados Unidos em 1860, era um senador de primeiro mandato em um Estado menos importante naquele momento. Ele venceu homens poderosos, e o primeiro ato dele foi escolher como seus ministros nas três principais áreas aqueles que foram os que havia derrotado nas eleições. É um sinal de inteligência impedir na política, na escola, na igreja, na família, que o conflito se degrade e vire confronto.
Como as pessoas podem evitar esses confrontos?
A primeira coisa é obedecer o antigo aviso que as estradas de ferro traziam, que é "pare, olhe, escute". Antes de atravessar qualquer linha, a do pensamento, da discussão, do debate, preste atenção, tente capturar o que o outro quer dizer, o quanto aquela pessoa só pensa diferente, não é teu inimigo. Neste sentido, é preciso que a gente tenha capacidade inclusive de humildade para entender que há muitos modos de ser humano. E nós somos um deles. A gente precisa ter uma compreensão sobre o lugar das diferenças. A capacidade de tolerância se dá quando a gente entende que a diferença é um valor da nossa existência à medida que aumenta nosso repertório de soluções. Portanto, ser diferente não é ser desigual, é apenas ser diferente.
Essa compreensão seria um passo para avançar como humanidade?
Sim. Tem muita gente que se acalma e diz que estamos evoluindo. Mas temos que entender que Charles Darwin nunca usou a palavra evolução como sinônimo de melhoria, ele usava como sinônimo de mudança. Que é o que a palavra significa em grego. Câncer também evolui, problema também se desenvolve, encrenca também progride. Por isso é preciso o uso muito maior da nossa inteligência para que a gente não degrade essa condição. Afinal, como um dia lembrou Mahatma Gandhi: "Olho por olho, uma hora acabamos todos cegos." E neste sentido é necessário mais capacidade de acolhimento, sem que eu abra mão da minha identidade, do meu pensamento, minha postura. Mas acima de qualquer coisa, entenda que a noção de ser humano (e eu tô usando o ser como verbo, não como substantivo) é plural, não é individual. Não existe ninguém no mundo como eu, mas eu não sou o único a estar no mundo.
Seu último livro, A Sorte Segue a Coragem!, aponta caminhos para que cada um cultive a própria sorte. Como podemos fazer isso?
Primeiro, ele visa lidar com uma noção de que coragem não é ausência de medo, é capacidade de enfrentar o medo. Uma pessoa que diz que não tem medo, ela não é corajosa, é inconsequente. O que a gente não deve é confundir medo com pânico. Pânico é a incapacidade de ação, medo é estado de alerta. E quando a gente diz que a sorte segue a coragem, expressa a noção que a coragem precisa ser competente, para que quando a ocasião vier à tona ela possa ser aproveitada. Por isso temos de ter a coragem como mecanismo de movimento, não como se a gente sentasse e aguardasse a sorte, o acaso.
Então a gente também é responsável por nossa sorte?
Com certeza. Há um ditado caipira da minha região no Paraná que diz que "o cavalo não passa arreado duas vezes". Evidentemente tem que ser completado: saberá montar um cavalo o primeiro que estiver prestando atenção. Segundo, precisa ter habilidade para montar o cavalo, tem que se preparar antes. Senão montá-lo será um desastre. Então a sorte não pode ser desprezada como um fator benéfico ou maléfico. Também parte daquilo que faço e dá errado, muitas vezes se deve a coisas que eu não quis. E eu preciso estar preparado para alterar minha rota e plano. Um dia Publílio Siro (escritor na Roma Antiga) escreveu que um plano que não pode ser mudado, não presta. Mas precisa ter um plano, inclusive para ser mudado.
Seu livro Por que Fazemos o que Fazemos fala sobre carreira. É possível ser feliz no trabalho?
A gente pode encontrar felicidade no trabalho, mas não é o lugar que ele vem sempre à tona. Aliás, nenhum lugar o é. Alguém que diz "eu quero fazer alguma coisa que eu gosto" é uma pessoa que está dizendo o óbvio. Só um imbecil gostaria de fazer o que não gosta. No entanto, para se fazer o que se gosta e obter algum ponto de felicidade nisso, é necessário fazer muita coisa que não se gosta.
Isso passa por encontrar também um propósito no trabalho?
Sim, afinal de contas é aquilo que coloco como meta e vou buscar. Por que faço o que faço? Porque me mandam, então eu tenho um propósito que é obedecer. Faço porque quero dar um passo para outro lugar, então aquilo que faço é uma etapa para obtenção de outra condição. O que não pode é ter uma vida automática, robótica, superficial. Portanto, alienada. O propósito é o que impede a alienação.
Mas também há uma espécie de obsessão em se estar sempre feliz...
A felicidade não é um lugar que você chega, é uma ocorrência, é um evento que não é contínuo. E quando ela vem a gente tem que aproveitá-la, porque sabe que ela vai embora. Mas ela volta. Ela é um instante, um momento, não é um tempo em que tudo será paradisíaco. Pelo contrário, a gente sabe que a vida tem turbulências, mas ela não tem só isso. Ser feliz o tempo todo é uma forma de tolice, e ser infeliz o tempo todo é um desperdício de vida.
Para muitos o ano começa de fato agora, depois do Carnaval. O que fazer para ter um ano produtivo?
A gente precisa ter projetos, propostas e metas exequíveis, ou seja, que possam ser realizadas. Se eu coloco para 2018 alguns objetivos que eu tenha muita dificuldade para alcançar, mesmo que esforço eu faça, eu vou conseguir ao final do ano frustração. A única possibilidade de eu não ter apenas frustração é estabelecer, mesmo que sejam poucas, metas que sejam realizáveis. E neste sentido as grandes perguntas são: quando terminar 2018, o que eu gostarei de ter feito? O que não terei feito, mas posso vir a fazer? E o que eu não fiz, porque fui relapso, fui negligente e preciso melhorar minha condição para alcançar isso? É um tempo de autoconhecimento para que não se termine em frustração, mas que também não se abandone a colocação de metas, vivendo uma vida no automático, alienada. Por isso um ano pela frente é uma possibilidade de realização de projetos. Nem tudo o que desejo acontecerá, mas se eu nada desejar, aí sim é que nada acontecerá.