O dia 2 de março de 1996 é uma data inesquecível para Nadine Clausell. Enquanto o Brasil se comovia com o trágico acidente envolvendo a banda Mamonas Assassinas, a cardiologista participava do primeiro transplante de coração realizado dentro do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
A vida da médica de 58 anos se entrelaça com a história da própria instituição. Em 30 anos de profissão, atuou como residente, professora, pesquisadora e, em janeiro, tornou-se a primeira mulher a assumir a presidência do hospital. Sem abrir mão de visitar o leito dos pacientes todas as semanas.
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Em entrevista a ZH, Nadine fala sobre a maior presença feminina na área médica e da necessidade de incluir mais os postos de saúde no atendimento à população. Aponta os desafios de administrar um grande hospital com os sucessivos cortes de verbas para a saúde pública e admite o risco de fechamento de mais vagas destinadas ao SUS:
– A redução de leitos é um corte na carne, mas, paradoxalmente, é o que vai estancar um pouco a sangria.
A senhora, uma cardiologista, ocupa há cinco meses a cadeira de presidente do Hospital de Clínicas. Como vai o coração?
É uma trajetória, de certo ponto de vista, previsível na minha carreira. Mas, quando a gente senta naquela cadeira, percebe que o desafio é, de fato, um pouco maior. A responsabilidade é muito maior do que se pressupõe. Vinha trilhando, nos últimos anos, um caminho de participar da direção do Hospital de Clínicas e me sinto preparada para o posto. Mas esses cinco meses têm sido de fortes emoções.
E o coração está forte?
Está firme. Por enquanto, tudo tranquilo (risos). Mas cada dia é um desafio para segurar o hospital. Principalmente quando o assunto é sustentabilidade. Esse é o grande calcanhar de Aquiles para quem atua na área da saúde: a responsabilidade de continuar entregando um produto de qualidade para a comunidade. Ainda mais com tanta dificuldade de acesso a financiamentos em um momento em que o Brasil está complicado.Mesmo ocupando o cargo de presidente, a senhora continua visitando o leito dos pacientes.
Como conciliar os trabalhos de gestão de um grande hospital e de assistência? Dá tempo?
Considero isso uma parte vital do meu dia a dia. Não podemos perder a noção da ponta, e, para mim, a ponta é cuidar de doente, é ensinar meus alunos da Faculdade de Medicina a atuar na assistência ao paciente. Se perco esse sentido, não consigo atuar bem na gestão do hospital. O fato de eu estar naquela cadeira não me exime, na minha leitura, de atuar nas outras áreas. Circulo pelo Clínicas o dia inteiro. Não preciso que ninguém me conte como está uma enfermaria ou o CTI (Centro de Tratamento Intensivo). Tenho minha leitura diária, como faço há mais de 30 anos. Nunca me passou pela cabeça sair fora disso. E tenho uma equipe maravilhosa, que ajuda.
Em 45 anos de história, a senhora é a primeira mulher a assumir o comando do Clínicas. Isso em um momento de muito debate sobre o empoderamento feminino, a participação e a voz da mulher na sociedade. Como vê essas questões de gênero?
Acho que precisamos nos diferenciar pela competência técnica. Essa tem de ser a batalha de qualquer um que vai para a escola, que começa a se capacitar e buscar espaço por mérito. Na área da medicina, mais de 50% dos alunos hoje são meninas, e vejo um avanço grande aí. O fato de eu estar nessa posição agora é resultado de um investimento pessoal forte, de buscar muita qualificação ao longo do tempo. Acho que isso faz portas se abrirem. Temos de batalhar contra o preconceito, mostrando a capacidade, o argumento técnico. Acho que a gente tem na UFRGS essa abertura. A professora (Lucia Maria) Klimann vai ser a primeira mulher no comando da Faculdade de Medicina. Temos a vice-reitora, professora Jane Tutikian e, antes dela, a primeira reitora, a Wrana (Panizzi). É uma onda que vem chegando. O Rio Grande do Sul, apesar de ser considerado um Estado machista, tem dado algumas demonstrações de força. Fico muito satisfeita com isso, mas prefiro acreditar que é algo do mérito. Não acho que, por sermos mulheres, precisamos ter uma porta aberta separada. É uma forma de segregação que a gente não pode aceitar. A porta tem de ser aberta porque as pessoas são boas, merecem e trabalham. E nunca devemos nos deixar abater em uma discussão porque alguém vai falar mais alto. Precisamos formar essas meninas que estão aí para se capacitarem não só na área médica, mas também na de gestão, que é um processo além. E esse é um caminho um pouquinho diferente. Também tem de ter uma preparação.
A senhora se sente um modelo para as meninas em formação?
É uma responsabilidade. Não sei te dizer ainda se sou modelo do ponto de vista de direção e de presidência. Na minha trajetória, sempre fui olhada por outros modelos, assistencial, de ensino e de pesquisa. Fico feliz em ver meninas e meninos que hoje são colegas meus, professores. Agora quero ver como será a questão da gestão, que é algo muito novo para mim. Tem de dar o tempo de maturação para puxar mais gente. A gente é transitório. Estamos aqui por enquanto.
A economia brasileira vive uma recessão sem precedentes e se fala muito em ajuste fiscal, enxugamento de despesas públicas. Isso lhe tira o sono?
É a preocupação número um na direção do hospital. O orçamento para saúde vem sendo cortado de maneira linear, como em outras áreas. Essa PEC que passou agora (PEC 55, que limita por 20 anos os gastos públicos) vai influenciar diretamente a questão da saúde e da educação. O Hospital de Clínicas e a UFRGS estão sofrendo. É um cenário muito ruim. A gente já lida com um orçamento do SUS que é subótimo para a necessidade da população. Os valores de tabela do SUS são menores. E há cortes orçamentários para investimento e compra de material novo. Esses primeiros meses têm sido complicados. Além disso, uma obra bastante importante (ampliação do hospital) também passa por um orçamento federal e, como outras obras no Brasil, vem sofrendo cortes. Vai se estendendo, tornando a construção potencialmente mais cara. É fundamental trabalharmos a questão saúde-custeio, e esse hospital é 90% SUS. A gente depende do orçamento do Ministério da Saúde. Está muito ruim para fechar a conta.
Nesse cenário de cortes, como manter a excelência no atendimento?
Esse é um ponto importante a salientar. É um hospital de ensino, mas tem uma grande produção assistencial. Se engana quem pensa que o Clínicas, por ser um hospital universitário, atende pouco ou tem áreas fechadas. Temos uma produção assistencial fortíssima, responsável hoje por mais de 25% dos atendimentos de alta complexidade na região de Porto Alegre. É muita gente, com doenças e situações clínicas muito complexas. Cirurgias de grande porte. Realizamos todos os tipos de transplantes aqui. Coração, fígado, pâncreas, rins, córneas, pulmão, medula óssea, fígado infantil. Tudo isso é muito caro. E público. Proporcionalmente, o custo maior do Clínicas é nesses procedimentos de alta complexidade. Como fazer a conta fechar sem fechar o hospital?
Nesse início de ano, o hospital precisou fechar cinco leitos. Como se chegou a essa decisão?
É muito difícil tomar essa decisão. Dependemos de um orçamento que é praticamente fixo na produção do SUS para pagar fornecedores do dia a dia de um hospital. A redução de leitos do SUS é um corte na carne, mas, paradoxalmente, é o que vai estancar um pouco a sangria. Quem vai sofrer com isso é a população. A gente não gostaria de fazer, mas somos uma instituição pública. É uma contingência que já vimos acontecer em outros hospitais. De uma maneira maior, inclusive. Tivemos de começar a fazer um pouco isso agora e estamos em negociação com o gestor municipal, que é o nosso contratante na prestação de serviço, para botar um pouco o pé no freio do Clínicas para que possamos manter fornecedor entregando material. Não adianta ficarmos com atraso de 30 dias, 60 dias, 90 dias. Senão, daqui a pouco não tem material para operar.
O Clínicas pode ser obrigado a fechar mais leitos?
O hospital é uma empresa pública de direito privado e, como tal, tem um conselho de administração. A gente presta contas e é obrigada a tentar buscar um equilíbrio orçamentário. O que nós temos de diferente, e que pode nos ajudar um pouco, é o fato de que temos a possibilidade de atender a pacientes de convênios e privados em uma proporção pequena de leitos. É possível que aumentemos um pouco a captação de recursos trabalhando com essa frente. Mas não é grande essa monta. Não é suficiente para equilibrar o déficit orçamentário do hospital, que tem mais de 800 leitos. Isso vem sendo discutido. Precisamos ofertar mais serviços para convênios e privados. Temos um parque tecnológico de laboratórios de primeiro mundo. Podemos fazer exames que as seguradoras queiram comprar aqui, de biologia molecular, coisas sofisticadas que a gente faz e, com isso, vender o serviço. Essas são coisas que teremos que nos obrigar mais e mais para tentar a entrada de recursos.
E quanto a fechar leitos?
É um horizonte que precisamos trabalhar. Precisamos ser transparentes com a nossa comunidade. Temos um limitante específico que é o contrato que temos com o SUS, que paga fixo. Não adianta querer fazer mais cirurgia para receber mais. Não é assim que funciona. É contrato assinado, uma produção X por mês e o hospital recebe do SUS aquele X. Contrata-se um X de leitos, um X de procedimentos, e a tendência de um hospital acadêmico é fazer mais porque os residentes querem fazer mais. Mas, mesmo quando fazemos mais do que o contrato prevê, o pagamento não muda. Para o déficit não ficar maior, vamos precisar reduzir um pouco mais.
Isso em um momento em que a crise expulsa pessoas dos planos de saúde privados e aumenta a demanda do SUS...
As operadoras estão estimando em torno de 20% de perdas. Para onde essas pessoas vão? Para os hospitais públicos ou para os postos de saúde. Acho que existe uma crise muito grande no país. As pessoas não têm saúde adequada e nem segurança. É um problema muito importante que a gente tem de enfrentar. Esperamos que o Brasil consiga sobreviver a isso.
Porto Alegre está preparada para esse aumento de demanda pelo SUS?
Na verdade, nós fazemos parte de uma rede do município. Somos o nível terciário (o primário são os postos de saúde e o secundário as unidades de pronto atendimento de média complexidade). Temos trabalhado muito com a secretaria municipal, que devo dizer, tem feito um trabalho espetacular de tentar organizar essa rede: o que é atenção primária, secundária e terciária. Para fazer chegar aos hospitais aquele paciente que realmente precisa de um atendimento no hospital. Isso vai fazer com que os postos abracem mais dessa demanda, que é por uma consulta de especialidade, atendimento mais básico. Acho que essa é a saída. Os hospitais não têm como absorver mais. Não têm como aumentar a oferta. É impossível, do ponto de vista operacional, e não tem contrato com gestor para isso. Se eu disser “vamos aumentar nossas consultas, cirurgias”, quem vai pagar essa conta?
O cobertor é curto.
Curtíssimo. Mas a reorganização das demandas que não são de hospital e que vinham para os hospitais porque os postos não estavam preparados é onde, acho, tem espaço para melhoria de processo. E acho que a Secretaria Municipal está vendo isso. Ampliando horários, colocando especialistas, tentando organizar demandas.
Antes, os postos de saúde estavam subaproveitados?
Acho que era uma questão de gestão e processos. É difícil fazer gestão na saúde pública. Às vezes, entram equipes novas e com ideias. Dão uma sacudida e observamos alguma melhoria de indicador. Essa equipe que está agora aí está olhando para isso. Não tem novas contratações, que eu saiba. É uma questão de organização, de alocar o recurso escasso de uma outra forma.
Quando falamos em gestão pública, há algum país que possa servir como referência?
Acho que precisamos olhar países com sistema público de saúde. Não dá para comparar com Estados Unidos. Canadá, Inglaterra e França, onde são sistemas completamente públicos, têm uma rede básica muito forte e isso é o que segura a saúde. Trabalham muito na prevenção do adoecimento. Aqui no Brasil, os pacientes não têm capacidade de cuidar mais cedo da sua pressão, do diabetes. Aí, lá na frente, vemos milhões de pacientes hipertensos, com AVC, diabete descompensada. Na Inglaterra, no Canadá, esse cuidado começa muito cedo. Com o médico de família, agentes comunitários. Isso diminui a pressão nas grandes capitais, nos grandes hospitais. É muito organizado.
A superlotação nas emergências é um problema crônico. Tem solução no curto prazo?
O ponto nevrálgico é a falta de recurso. A superlotação de hospitais, clínicas e postos se dá porque a gente não consegue uma distribuição mais homogênea de classes e níveis de atendimento, a fim de evitar a lotação das estruturas.
A conclusão da ampliação do Clínicas estava prevista para novembro deste ano e foi prorrogada para dezembro de 2018. Há risco de novo adiamento?
Fizemos o plano de crescer e fazer o hospital avançar não só em área física, mas também em estrutura de alta complexidade. O Clínicas responde por mais de 25% da alta complexidade na região e o crescimento dos anexos 1 e 2 focam muito nisso: paciente de CTI, paciente crítico, bloco cirúrgico. Nós planejamos isso lá em 2010, 2011. O hospital estava explodindo. Isso foi planejado e orçado em uma época em que o Brasil vivia um momento diferente. Agora, estamos com uma obra que já passou de 50% da sua conclusão, mas que vem sofrendo cortes sistemáticos. Nada pessoal contra o Clínicas. É assim para todas as obras do governo. E nós somos um hospital do MEC (Ministério da Educação), estamos no orçamento do MEC. Isso vem acontecendo, e nós estamos estendendo o prazo de conclusão da obra.
O fim da obra pode ficar para depois de 2018, então?
Te digo que vamos tentar terminar no final de 2018. Corre o risco de haver mais cortes e ser postergado. Estamos sempre em contato com o MEC. A secretária executiva do ministério tem assento no Conselho Diretor, participa todos os meses das nossas reuniões. Mas tenho dúvida se ela termina em 2018. Tudo isso que temos para 2018 é obra física, com instalação, ar condicionado etc. Mas e os equipamentos médicos? O anexo 1 é de alta complexidade. Nós vamos ter lá 110 leitos de CTI, 40 salas cirúrgicas. Hoje, nós temos 20 e poucas. É um prédio muito caro. Nós estamos desenhando os projetos e vamos apresentar para a União. É uma época difícil para fazer esse movimento, mas a gente precisava fazer.