Galã conquistador e disputado em incontáveis tramas da ficção, o ator José Mayer, 67 anos, um dos mais conhecidos e atuantes da teledramaturgia brasileira, acaba de adicionar um lamentável componente de realidade a sua bem-sucedida biografia. Acusado de assédio sexual pela figurinista Susllem Tonani, 28, sua colega de trabalho na TV Globo, ele primeiro negou as investidas – comentários grosseiros, xingamentos e até um toque na genitália da jovem. Encurralado pela intensa repercussão e pela campanha "Mexeu com uma, mexeu com todas", protagonizada por atrizes e com o apoio da própria emissora, Mayer, suspenso por tempo indeterminado, divulgou uma carta assumindo sua culpa: "Errei no que fiz, no que falei, e no que pensava".
O caso se soma a outros dois rumorosos episódios recentes, da mesma natureza, envolvendo figuras públicas: o senador Lasier Martins (PSD-RS) e o cantor Victor Chaves. Em um período de visibilidade ímpar no noticiário para a discussão sobre o combate à violência contra a mulher e a luta pela igualdade de direitos (na última terça-feira, desdobramentos dessas três histórias ocupavam seis posições de destaque na capa do site de Zero Hora), é inevitável questionar se estamos diante de um marco na maneira como o machismo é tratado – e tolerado – no Brasil. O enredo envolvendo uma figura tão conhecida e até então admirada pelo público será forte o suficiente para instigar um debate mais profundo e duradouro, capaz de modificar comportamentos e valores?
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Consultados pela reportagem de ZH, especialistas de diferentes áreas foram unânimes quanto a um aspecto: a discussão está passando a outro patamar, e a repulsa pelas práticas que condenam mulheres a degraus mais abaixo se dissemina cada vez com mais rapidez. Para a antropóloga Daniela Knauth, professora do Departamento de Medicina Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), ainda é cedo para se falar em mudanças. Na sua opinião, o mais marcante agora é o não silenciamento das mulheres e a reverberação de suas queixas e demandas por conta da fama dos personagens envolvidos. Daniela destaca a renovação do movimento feminista, que ganha fôlego notável via redes sociais:
– A denúncia é fundamental, e esse episódio encoraja outras mulheres a denunciar. Cria-se uma condição de possibilidade para que outras pessoas não tão influentes venham a denunciar. As mulheres se colocam no lugar umas das outras, todas assumem o lugar da vítima. É bom alimentar e reforçar a sororidade, isso permite o empoderamento maior.
Observadora perspicaz do comportamento sexual e afetivo de homens e mulheres ao longo de décadas, a psicanalista e escritora Regina Navarro Lins comenta que, ainda que estejamos atravessando um período de transição – do machismo mais feroz em direção à paridade entre gêneros –, uma tradição de milênios continua a pautar as relações e a vida em sociedade.
– Desde que o sistema patriarcal se instalou, dividindo a humanidade em duas partes, o homem para um lado, a mulher para o outro, e decidindo com muita clareza o que é masculino e o que é feminino, criou-se um ideal masculino, o mito da masculinidade: força, sucesso, poder, coragem, ousadia, nunca broxar, comer todas as mulheres. A mulher foi oprimidíssima nos últimos 5 mil anos. Durante muito tempo, serviu só para dar prazer ao homem e ter quantos filhos ele quisesse. Depois da pílula, elas começaram a reagir. Começou a cair a ficha no homem de que o machismo é prejudicial a ele também: é exaustivo corresponder ao modelo de força, sucesso, poder, ganhar dinheiro, nunca falhar – descreve.
Regina garante que só será possível evoluir por meio da reflexão. Crenças e valores equivocados que são introjetados naturalmente desde a infância, argumenta a psicanalista, precisam ser questionados. Na carta aberta em que pediu desculpas "a Susllem, às minhas colegas e a toda a sociedade", José Mayer, em um dos trechos mais polêmicos, se apresentou como "fruto de uma geração que aprendeu, erradamente, que atitudes machistas, invasivas e abusivas podem ser disfarçadas de brincadeiras ou piadas". O texto, saúda Regina, é uma grande contribuição:
– Temos que nos libertar do moralismo, dos preconceitos, do machismo, da misoginia. As pessoas têm que refletir se quiserem viver melhor. A carta foi muito importante para os machistazinhos se darem conta de que está na hora de mudar.
À frente da Anis – Instituto de Bioética, organização feminista dedicada à promoção dos direitos humanos, Debora Diniz, antropóloga, cientista social e documentarista, acredita que o caso é emblemático, mas faz uma leitura diferente da missiva do artista global. Ainda que corajosa, a iniciativa, avalia Debora, mais lhe parece a "carta de um náufrago lutando pela sobrevivência":
– Ele diz que é produto de uma geração machista. Não temos uma resignação passiva em relação à história que nós vivemos. Não é porque vivemos em uma sociedade machista, racista, contra a deficiência que podemos justificar os nossos preconceitos e as nossas discriminações por isso. Ele diz que vai mudar, mas ele teve acesso a todos os mecanismos de informação, de inserção nas elites, de escolaridade, representando inclusive papéis de homens capazes de fazer esse giro. Por que não fez? Por que não faz? Porque é confortável o machismo, ser o patriarca, o macho. É confortável.
Nas últimas linhas, o autor assegura que a lição foi aprendida: "O José Mayer homem, ator, pai, filho, marido, colega que surge hoje é, sem dúvida, muito melhor". Debora acrescenta:
– Eu também espero que esse movimento seja um divisor de águas, que sirva para ele se lançar no espaço público de outra maneira e ser um porta-voz de formas diferentes de viver a masculinidade e o respeito com as mulheres.
Na esfera corporativa, o manejo adequado de situações envolvendo assédio sexual é fundamental para evitar danos à imagem da empresa e preservar a saúde do ambiente de trabalho, mas as ações devem ser planejadas com cautela. Ério Nascimento, vice-presidente da Associação Brasileira de Recursos Humanos no Rio Grande do Sul (ABRH-RS), explica que a vítima deve ser consultada e amparada durante todo o processo. No calor dos acontecimentos e da boataria, surge o risco de se tomar atitudes precipitadas, que não considerem o impacto que a divulgação do ocorrido poderá ter na vida privada e familiar de quem foi atacado – se a funcionária que é molestada repetidamente pelo chefe jamais desabafou sobre isso com seu marido e seus pais, por exemplo, deve-se pensar a respeito de como essa notícia chegará até eles.
Nascimento ressalta que condutas inadequadas não são exclusividade de grandes empresas como a Globo ou ramos específicos de atividade – o assédio está em organizações de todos os tipos e portes, das pequenas às grandes corporações. Em organogramas em que há altos cargos de comando ou figuras de grande projeção, como é o caso de Mayer, a pior solução é o acobertamento.
– Ao proteger o executivo com poder, algumas empresas esquecem que estão prejudicando a marca e todo o ambiente interno. Essas notícias correm pelo corredor, não ficam só dentro da empresa. A estagiária assediada conta para os amigos, conta para a família – exemplifica o vice-presidente da ABRH-RS. – As empresas vêm evoluindo nessa questão da transparência. O tratamento disso de forma mais aberta é louvável. Tem que ser um valor da empresa proteger a marca, a empresa e também o indivíduo – completa.
Robson Pereira, psicanalista e membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa), pensa que atitudes contundentes em nome da moral e da ética, como o posicionamento público do ator ("É o mínimo que ele teria de fazer") e também da Globo, que lamentou que Susllem "tenha vivido essa situação inaceitável num ambiente que a emissora se esforça cotidianamente para que seja de absoluto respeito e profissionalismo", são importantes para a consolidação de uma mudança efetiva em nossa cultura e nossa subjetividade – mas, sendo o desrespeito com o outro tão marcante, é preciso ter persistência. Pereira também alerta que não se deve almejar uma mudança completa, uma nova sociedade respeitosa e correta em sua totalidade:
– Temos que perder essa fantasia da totalidade das coisas, de que as coisas se resolvem ou tudo, ou nada. Senão a gente não muda nada.
Três casos rumorosos
– Em 24 de fevereiro, o cantor Victor Chaves, da dupla sertaneja Victor&Leo, foi acusado de agressão pela mulher, Poliana Bagatini Chaves. À época grávida de dois meses, ela registrou ocorrência relatando que o marido a jogara no chão, chutando-a várias vezes. Poliana chegou a voltar atrás, dizendo que o músico não a havia machucado. Com base no depoimento da vítima e em imagens de câmeras de segurança, a polícia indiciou Victor por vias de fato (agressão física sem lesão corporal).
– A jornalista Janice Santos prestou queixa contra o marido, o senador Lasier Martins (PSD-RS), alegando ter sido agredida durante uma discussão ocorrida em 28 de março. Segundo Janice, não foi a primeira vez que ela sofreu violência por parte do parlamentar. O casal está em processo de separação. Em entrevista, Lasier negou a agressão e disse estar sendo “vítima de uma chantagem”.
– Em texto publicado no blog #AgoraÉqueSãoElas, da Folha de S.Paulo, em 31 de março, a figurinista da TV Globo Susllem Tonani descreveu situações de assédio a que foi submetida pelo ator José Mayer. Atrizes se solidarizaram e lançaram a campanha “Mexeu com uma, mexeu com todas”, que recebeu o apoio da emissora. Mayer foi afastado por tempo indeterminado das produções globais.