Cristiano Bastos
Jornalista, autor de Julio Reny – Histórias de Amor & Morte (Artes e Ofícios, 2015)
Califórnia, Estados Unidos, 18 de junho de 1967. No backstage do Monterey Pop, festival que serviria de modelo para o badalado Woodstock, os guitarristas Jimi Hendrix e Pete Townshend tiram cara ou coroa para saber qual banda sobe ao palco primeiro: The Who ou Experience? A face da moeda pendeu para o Who, que, literalmente, demoliu tudo com a estridência de My Generation – instrumentos, palco, amplificadores.
Sobrou para Hendrix impressionar o público depois de um Pete Townshend no auge de sua forma. Em sua primeira apresentação para o público norte-americano, ele não deixou barato. Finalizada com os poderosos acordes de Wild Thing, a performance de Hendrix se tornou icônica, talvez a mais grandiosa da história do rock. Avisou que encerraria o show sacrificando "algo que amava muito" em honra do público: tirou um isqueiro do bolso, jogou o fluido sobre a guitarra, ateou fogo e se ajoelhou em reverência à Fender Stratocaster agonizando em chamas. Em seguida, quebrou a guitarra em pedaços e os distribuiu à pasma audiência. Gesto que foi tanto a consagração do negro guitarrista quanto um dos símbolos máximos (de ruptura) para o fenômeno social capitaneado pela juventude daqueles dias, o clímax do "Verão do Amor".
Em 2017, completam-se 50 anos do "Summer of Love" – o que também marca o início da chamada Era Hippie, movimento de proporções globais, do qual o nosso país, mesmo que anacronicamente e em cinzentos tempos de ditadura, não ficou de fora. Ao redor do mundo, o período foi marcado pela cultura das drogas, pela liberação sexual, pela luta por direitos e por movimentações sociais e rupturas com o sistema, que produziram legados presentes até hoje nas artes e no comportamento.
Transcorridas cinco décadas, continua havendo uma forte ligação da contemporaneidade com a década de 60 e seus múltiplos heróis e idealismos. O fato é que o Verão do Amor despertou uma concentração de insatisfações que, um ano depois, desembocariam no emblemático Maio de 1968 francês. E que, por consequência, influenciariam uma série de movimentos pacifistas e em prol de direitos individuais – a liberação sexual, a expansão da luta feminista e da batalha dos negros pelos direitos civis nos EUA, os protestos contra a Guerra do Vietnã.
Mais do que uma guitarra em chamas, o mundo de 1967 poderia ser mais bem descrito como um imenso barril de pólvora. Se na música e na cultura o espírito era de paz, amor e experimentalismo, na política mundial imperavam a beligerância e o conflito. Eis o contexto 50 anos atrás: em um dos períodos mais tumultuados da Guerra Fria, o Vietnã estava sendo massacrado e Mao-Tsé Tung assumia o poder na China. Em outubro, Che Guevara, líder da guerrilha na América Latina, foi capturado e fuzilado na Bolívia. E, no Brasil, Castello Branco deixava a presidência vítima de um acidente aéreo (até hoje não totalmente explicado), abrindo alas para Costa e Silva, o mais linha-dura dos generais dos "Anos de Chumbo" – cinzento prenúncio do castrador AI-5 que seria instituído no ano seguinte.
No mesmo mês em que Hendrix imolava sua Fender no palco de Monterey, os Beatles surpreendiam o mundo com Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, álbum que mudaria de forma inexorável a face da música popular no planeta. Também naquele ano, com semelhante impacto, The Doors, Velvet Underground e Pink Floyd fizeram suas estreias discográficas, que ajudariam a definir o legado cultural colorido e multifacetado daqueles dias.
No Brasil, o filme Terra em Transe, de Glauber Rocha, ganhava aclamação mundial e a Tropicália bagunçava o comportado ambiente da música brasileira de então. O espírito "bicho-grilo" não chegou ao país sem traumas. Em um momento de ditadura vigente, a arte estava muito marcada pela grande pressão ideológica de ser engajada, principalmente de acordo com os princípios socialistas, e o descompromisso anárquico de muito do ideário hippie foi visto por grande parte da esquerda nacional como alienante. Mesmo assim, as influências hippies chegavam, em pequenas porções, embaladas pela indústria cultural e digeridas antropofagicamente pelos tropicalistas. Era pouco, mas suficientemente importante para influenciar artistas em todo o Brasil e também no Rio Grande do Sul, analisa o mestre em História Cultural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Lucio Fernandes Pedrosa.
Pedrosa contextualiza que a Porto Alegre de 1967 era praticamente uma cidade do interior. Nem tanto pela população, já que o censo de 1970 do IBGE registrava 900 mil habitantes – em 2010, foram contados 1,4 milhão, por exemplo. Era mais pelo isolamento imposto às capitais periféricas pelas dificuldades logísticas, como a condição de estradas e das comunicações, aliado ao conservadorismo agravado pelo clima político da época. O caráter provinciano da cidade retardou um pouco a sincronização dos jovens locais com os fenômenos sociais experimentados por seus pares no resto do mundo. Nas universidades, o movimento de esquerda contra a ditadura civil/militar era intenso. Nas festas, bandas covers misturavam jovem guarda com iê-iê-iê e, no bairro IAPI, nascia o Liverpool, grupo que apresentava forte influência tropicalista e cheio de personalidade local.
– A influência hippie vai ter maior abrangência no Brasil apenas na década de 1970, muito por causa do filme feito sobre Woodstock. Outro motivo foi o enrijecimento do regime militar nos sombrios anos de chumbo, pois muitos jovens escolheram o hedonismo do flower power como uma janela de liberdade em uma sociedade tão sufocante – contextualiza o historiador.
As histórias, as criações e as músicas, especialmente, de 365 dias tão intensos, parecem continuar dizendo, de forma bastante eloquente, muita coisa sobre os dias de hoje: um mundo moderno, conectado e teoricamente diverso, mas onde cada vez mais muros são erguidos para distinguir pessoas, bombas continuam matando civis e ondas de conservadorismo continuam a se manifestar em todos os cantos do planeta. É até difícil acreditar que houve uma vez um verão do amor... A verdade é que estamos mais para "Verão do Caos".
O filósofo, escritor e jornalista Luiz Carlos Maciel, um dos fundadores do jornal alternativo O Pasquim e autor de livros como Anos 1960 (L&PM, 1987), reconhecido como o "guru" da contracultura no Brasil, busca noções alternativas da ideia de tempo para relativizar a confusão experimentada em nossos dias. Ele atenta para o fato de que nossa cultura ocidental trabalha com a concepção de um tempo retilíneo – uma linha que vem do passado, passa pelo presente e vai para o futuro. Para ele, embora oficialmente estabelecida, esta é apenas uma concepção entre outras. Ele enumera, por exemplo, o tempo cíclico das culturas chamadas primitivas, concebido diretamente da observação da natureza (dias, estações); o tempo ortogonal com que trabalha Philip K. Dick; a negação do tempo do budismo, especialmente no zen; as mutações do I-Ching, o taoísmo, etc.
Portanto, para Maciel, as noções de progresso ou regressão, de que tudo "melhorou" ou "piorou" de antes para agora, são uma mera maneira de ver de acordo com a concepção oficial. Mas, ele pondera, tempo e história são noções arbitrárias. Os cinquenta anos que permeiam 1967 e 2017 seriam, então, irrelevantes, uma maneira de ver entre outras. Na visão do filósofo, a questão fundamental continua sendo a mesma: .
– Na realidade, o que havia de efetivo [naqueles dias], então, era a luta pela liberdade e o que há agora é justamente a luta pela liberdade. A mesma luta, o mesmo desafio. O distante "paz & amor" e o próximo "verão do caos" não são mutuamente alheios, embora pareçam contraditórios. Esses dois, como diria [o filósofo americano] Norman O. Brown, são um só. O verão do caos açoitava 1967; a paz e o amor estão, aqui e agora, em nossos corações. São também apenas duas maneiras de ver mas são nosso desafio. O que interessa no século passado, ou neste, em todos os passados e todos que virão, é a conquista da liberdade humana. Esta luta é eterna, aqui e agora, a tarefa dos guerreiros de hoje e sempre.