De forma improvisada, cerca de 30 homens e mulheres em situação de rua vivem dentro de uma área pública encravada no coração de Porto Alegre – que recebe milhares de visitantes durante os festejos farroupilhas. Abrigados há cerca de dois anos no Parque Maurício Sirotsky Sobrinho (Harmonia), em um 'acordo amigável' com a prefeitura, eles identificam como aldeia as comunidades que se formaram nos três galpões de madeira, com telhados de zinco e sem paredes, e no meio das árvores da área circundada pela Rua Otávio Francisco Caruso da Rocha e pelas avenidas Edvaldo Pereira Paiva e Augusto de Carvalho. Ali, convivem com suas próprias regras, alheios ao tempo e ao espaço do restante da sociedade.
E foram os sonhos esvaziados pelo desemprego, pela violência e falta de perspectivas que acabaram unindo, mesmo que sem planejamento, os diferentes ocupantes do local.
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Entre os moradores, há desempregados, jovens fugindo da violência, estudantes, dependentes químicos, trabalhadores informais e ex-moradores do Interior que vieram tentar a sorte na Capital. Eles fazem parte de uma população que, entre 2008 e 2016, passou de 1.203 para 2.115 pessoas vivendo em espaços públicos de Porto Alegre, segundo a pesquisa Cadastro e Mundo Da População Adulta Em Situação De Rua De Porto Alegre/RS 2016, feita pela Ufrgs a pedido da prefeitura.
Sem endereço fixo
A realidade das ruas é conhecida pelo soldador Josemar dos Santos, 49 anos, desde o fim do ano passado. Natural de Santa Maria, Josemar conta que, depois de ter se separado, em 1997, passou os anos seguintes trabalhando em grandes obras pelo Estado. Em todas elas, viveu nos canteiros da construção, que lhe proporcionavam a habitação e a alimentação gratuitas.
– Nunca me preocupei em ter uma casa própria. Foi meu erro. No ano passado, descobri isso da pior forma – recorda.
Enquanto segura uma mochila com a carteira de trabalho, os documentos de identificação e todos os bens materiais que lhe restam – uma calça jeans, uma camiseta, uma cueca, dois pares de meias, um par de chinelos e outro de botas de couro –, Josemar revela como conheceu as ruas em novembro de 2016. Ele trabalhava na construção de um prédio em Bento Gonçalves, na Serra, quando a obra foi embargada e a construtora decretou falência. Demitido sem receber todos os direitos – a situação segue na Justiça – seguiu rumo a Porto Alegre na esperança de conseguir um novo emprego.
– Não havia obras precisando de funcionários, e eu não tinha um endereço fixo. Isso me prejudicou muito – justifica.
Reencontro
Com o passar dos dias, Josemar optou por dormir nos albergues da cidade, onde tinha uma cama, direito à higiene e refeição. Sem ter onde ficar durante o dia, passou a recolher material reciclável nas ruas. Foi onde reencontrou, por acaso, um amigo que não via há 14 anos, desde quando atuaram juntos numa obra em Caxias do Sul.
Antônio, que pediu para não ter o nome completo e a imagem revelada, é natural de Tenente Portela, cozinheiro profissional e também construtor civil desempregado. Com quase 60 anos e sem conseguir um emprego, encontrou no Harmonia uma nova família.
– A gente vem do Interior achando que tudo vai ser mais fácil, mas dá com a cara na porta – lamenta Antônio, que conversa todos os dias com familiares no Interior. Eles desconhecem a situação do parente.
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Josemar e Antônio dividem o mesmo galpão, identificado como “a aldeia dos mais experientes”. Sobre o teto de zinco vivem cerca de dez homens, a maior parte deles com mais de 45 anos e vinda do Interior. Juntos formaram uma nova família, e é Antônio o responsável por cozinhar no fogão de pedra montado numa das extremidades do prédio. Na data da visita da reportagem, o almoço preparado era arroz com galinha. Para comprarem os alimentos, quatro moradores ajudaram com o que haviam arrecadado em reciclagem.
Enquanto Antônio cozinha acompanhado por música tradicionalista num rádio de pilha, Josemar organiza os pertences que lhe restam e outros dois amigos leem jornais do dia.
– Gosto muito de ler e estar informado. Guardo dinheiro todos os dias, do pouco que ganho na reciclagem, para comprar o jornal – revela outro morador natural de Carlos Barbosa, que também vive entre o albergue e o Harmonia e pediu para não ser identificado.
– A gente se dá muito bem, um ajuda o outro em termos de alimentação ou um cigarro ou até mesmo um aperitivo. Mas viver assim é bastante difícil. A gente se sente meio humilhado – desabafa Josemar, enquanto mostra a carteira de trabalho sem a baixa do último emprego.
"Esse 'grupo da Harmonia' nos sugere como o 'morar na rua' é uma condição e não uma característica de ninguém. Pode acontecer a qualquer um e não é uma patologia, mas uma condição que pode afetar a grande maioria da população vulnerável no nosso país e em outras partes do planeta."Flávio Comim, professor de Economia na Ufrgs e especialista em Economia da Pobreza
Violência
O mesmo sentimento é compartilhado por um vizinho da chamada “aldeia dos mais jovens”. César Valmor Campos Junior, 27 anos, está na rua há quatro anos, desde que precisou fugir da violência de uma vila da Zona Norte de Porto Alegre. Para trás, deixou a mulher e os dois filhos – hoje com sete e oito anos –, visitados por ele nos finais de semana. Ex-pintor profissional, César admite não estar empregado por não ter um endereço fixo.
– Cheguei a ser chamado por uma firma, mas não me admitiram porque não tinha comprovante de residência. Foi duro ouvir isso – desabafa.
Hoje, trabalha como repórter e vendedor do jornal Boca de Rua – produzido por moradores em situação como a de César e que conta com mais de 60 integrantes – e cursa o oitavo ano na Escola Porto Alegre. Às tardes, ele pode ser encontrado na frente de um supermercado na Rua Lima e Silva. É o ponto de venda dos jornais. Quando termina todos, recolhe os dos companheiros para ajudá-los a aumentar a renda. Mas nem o trabalho, do qual demonstra orgulho, torna César um homem sem mágoas. E ele tem motivo.
– Tem muitos que passam e vão para o outro lado da rua pensando que o cara é assaltante. Mas o cara não está ali para assaltar, está ali para trabalhar – explica o jovem, que faz parte de movimentos sociais e discute política com quem tiver interesse.
Personalidades
A mesma segurança ressaltada por César é compartilhada pelo casal Angélica Nascimento, 28 anos, ex-moradora do Bairro Lomba do Pinheiro, e Jackson Ferreira, 37, há 16 anos vivendo na rua.
– No Harmonia a gente vive em harmonia – garante, rindo.
Sonhando chegar à faculdade para se tornar um jornalista com diploma, César orgulha-se de já ter entrevistado as principais figuras do cenário político gaúcho e costuma mostrar as páginas do Boca de Rua a quem conversa com ele.
A pesquisa da Ufrgs com moradores de rua mostra que quase metade dos moradores está há mais de cinco anos nessa condição _ 10% estão há mais de 20 anos vivendo embaixo de viadutos e marquises e 30%, há mais de uma década.
– É como uma aldeia. Aqui é uma, lá é outra, lá nos tios é outra. Tu tem como dormir, acordar e ir trabalhar, buscar o alimento, não roubar. Estar no parque da Harmonia é mais seguro do que estar lá (na Zona Norte) – resume César.
– Não me importo que a Brigada Militar entre aqui e faça o seu trabalho (revistar). É obrigatório e para a nossa própria segurança. Mas aqui é bom porque é isolado e não tem incomodação – afirma Jackson.
Juntos há quase dois anos, eles se conheceram nas ruas da Capital e encontraram no Harmonia o lugar para viverem enquanto não conseguem mudar de situação. Alegam que as cercas do parque afastam os rebeldes que não se adaptam a nenhuma regra.
Os diferentes
Jackson faz parte do Movimento dos Moradores de Rua é um dos mais antigos do local, sendo respeitado pelos demais. Ao lado de outros dez moradores, vive no galpão central reconhecido como a “aldeia dos diferentes” – aqueles que não se adaptaram às regras dos mais jovens nem dos mais velhos.
No dia em que encontrou a reportagem, carregava uma sacola repleta de galinha, massa e arroz, e um pote plástico. Acabara de voltar da venda dos jornais e havia comprado o alimento do almoço.
– Passei por uns irmãos que vivem perto dos Açorianos e eles estão com muita fome. Peguei o potinho deles e vou levar comida, assim que terminarmos de cozinhar – revelou Jackson.
Comunicativo, Jackson conversa sobre as discussões do aumento da tarifa de ônibus até as políticas públicas destinadas às pessoas em situação de rua:
– Me inscrevi no Minha Casa, Minha Vida porque nos disseram que 3% dos imóveis seriam para nós. Estou esperando até hoje. Cadê os 3%?
Órfão de mãe e filho de um motorista de ônibus, que ele costuma visitar no final da linha ou na casa da família, Jackson recorda da infância num projeto social na Vila Mapa. Desde a morte da mãe, quando tinha por volta dos 12 anos, passou a sair de casa e a dormir nas ruas, onde conheceu as drogas. Hoje, tem quatro primos em situação de rua.
– A droga foi meu mal. Comecei com loló, depois veio a maconha e a cocaína. Preferi ficar longe da família para não dar trabalho. Não quero depender do pai – afirma.
Mas ao conhecer Angélica, também dependente de loló e que vive nas ruas desde a infância junto com uma irmã – já falecida, Jackson garante que sentiu a responsabilidade de mudar.
– Levei ela para conhecer o meu pai, minhas tias e minhas sobrinhas. Todos gostaram da Angélica. Quero formar uma família com ela e sair desta vida. Quero reconquistar o meu filho de 12 anos, que hoje vive com a avó materna em São Gabriel – planeja.
“Quando a vida é muito dura buscamos fugir dela. As dificuldades enfrentadas pelo ‘grupo da Harmonia’ são dificuldades enfrentadas por todos. O abandono desse grupo diz mais sobre a sociedade na qual eles estão do que sobre eles. Estamos em uma sociedade pouco humana.” Flávio Comim
Povo da mata
Distantes dos moradores dos galpões, há um grupo de seis homens vivendo entre as árvores do Harmonia, conhecidos como “o povo da mata”. Garantem já ter trabalhado em grandes obras da Capital. Porém, ao perderem os empregos, não teriam conseguido novo posicionamento no mercado. Juntos, dormem entre as mesas que deveriam ser usadas por visitantes. Estão ali até se adaptarem a um dos galpões.
Quem vive no Parque utiliza os banheiros públicos do local para a higiene e o banho. A convivência com os funcionários do DMLU, responsáveis por cuidar dos ambientes, é pacífica. Os próprios moradores improvisados afirmam que há um acordo entre eles e a prefeitura para deixarem o local em datas festivas – como o rodeio de Porto Alegre e o Acampamento Farroupilha.
Juntos, mantêm um pensamento único: querem uma nova chance de vida e o reconhecimento como parte da sociedade.
– Muito obrigado – agradece o fotojornalista Carlos Macedo, que fazia a reportagem, depois de concluir as fotos.
– Eu que agradeço – finaliza Cesar, contente por contar a própria história.
Na pesquisa da Ufrgs, os principais motivos da ida à rua apresentados foram o uso de drogas e a instabilidade familiar – situações apontadas pelos moradores do Harmonia.
Prefeitura reconhece a situação
Por meio da assessoria de imprensa, a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social admitiu ter conhecimento de todas as pessoas que estão nos galpões do Parque Harmonia. A Secretaria atende a estes moradores com a equipe de médicos e enfermeiros do Consultório na Rua, em trabalho integrado e interdisciplinar.
Ainda segundo o órgão, há “um acordo amigável de permanência no espaço”, que é desocupado “pacificamente na festa de 20 de Setembro. Mas este é um acordo tácito com o MTG e a prefeitura que, por meio de sua equipe de abordagem social nas proximidades da festa, realiza um trabalho de aproximação e retaguarda com os ocupantes do espaço”.
Parcerias
Desde abril de 2016, a prefeitura oferece o Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos com Ênfase na População em Situação de Rua. Ele é uma parceria entre a Fasc e a Associação Cultural e Beneficente Ilê Mulher, e oferece atividades socioculturais, educativas e oficinas de formação e preparação para o mundo do trabalho.
Segundo a Secretaria, o objetivo do serviço é assegurar espaços de convívio que favoreçam o desenvolvimento de relações de afetividade e sociabilidade, valorizando os indivíduos pelo resgate de suas culturas e a promoção de vivências.