A cada vez que a convidam a falar sobre o Dia da Consciência Negra, a tenente-coronel Najara Santos da Silva, comandante do 21º Batalhão da Brigada Militar, localizado no bairro Restinga, em Porto Alegre, vai logo avisando, com bom humor:
– Se vocês estão pensando que eu vou chegar aqui e fazer papel de vítima, da coitada, da escravizada, não vai rolar.
Acostumada a derrubar preconceitos, tornou-se uma das três mulheres com a função de comandante no Estado, entre as cinco tenentes-coronéis. Mas prefere não levantar bandeiras, dizendo que "é difícil para todo mundo". Num ambiente majoritariamente masculino, vem galgando posições.
– Quando tu é pioneiro, tudo é difícil – diz.
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E de pioneirismo ela entende. Além de ter ingressado na primeira turma feminina de sargentos, em 1986, foi a primeira mulher a ser instrutora de tiro no Estado, em 1997. Em 2003, quando estava prestes a ministrar uma aula em Canoas, chegou 30 minutos antes para buscar a munição e o armamento. Em meio aos preparativos, um sargento entrou na sala e se dirigiu a um auxiliar:
– Oi, queria ver se o instrutor vai demorar para chegar, porque o pessoal está querendo tomar um café.
– Ah, se vocês forem rápido, dá, porque a instrutora já chegou.
– Estou falando de instrução de tiro!
– Sim, a instrutora já chegou – repetiu o auxiliar, apontando para Najara, fardada na mesma sala.
– Sim, mas... ela é uma mulher!
Najara fez de conta que não ouviu e deu a aula normalmente.
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O exemplo de determinação veio da família. A mãe, descendente de italianos, saiu de Estrela rumo a Porto Alegre com a família quando tinha quatro anos, fugindo de uma enchente, com a roupa do corpo. O pai, bisneto de escravos, se tornou sargento do Exército.
– Eles passaram inconscientemente para nós a ideia de que a gente precisa batalhar na vida para ser alguém – conta ela, que tem duas irmãs e perdeu o pai quando ele tinha 51 anos, por complicações de uma cirurgia cardíaca.
Formada em História pela Unisinos, Najara sonhava em trabalhar como pesquisadora do Estado. Por falta de concurso do magistério, acabou fazendo o concurso para a Brigada Militar, em 1986. Naquele tempo, a presença de tropas femininas nas ruas era tão excepcional que, certa vez, quando ela e as colegas faziam o policiamento de trânsito na entrada da Oktoberfest, em Santa Cruz do Sul, acabaram provocando tumulto.
– Um motorista ficou parado porque tinha um monte de mulheres ali, era tudo novidade. O tempo todo a gente precisava estar provando que era capaz de atender uma ocorrência, comandar uma tropa. Mas sobrevivemos a essa fase.
Najara não ficou muito tempo na rua. Depois de ingressar na turma de sargentos, formou-se na segunda turma de oficiais, em 1990, e passou a se dedicar a dar instruções. Um dia, numa aula, contou que brigadianos foram no porão do navio para a Revolta Paulista de 1924, durante o movimento tenentista.
– Foram tipo bicho? – perguntou um aluno.
– É, tipo escravo, a diferença é que só iam até São Paulo, não atravessavam o Atlântico – comparou.
Como historiadora, ela considera importante conhecer a trajetória dos antepassados e da escravidão. Só não quer ficar aprisionada ao pretérito.
– Temos que voltar os nossos olhos para toda a sociedade – costuma repetir, citando a situação dos índios e das pessoas com deficiência para lembrar que todos merecem respeito e reconhecimento.
Fruto da mescla de italianos e afrodescendentes, Najara tem um tom de pele pardo, mas diz que sempre se entendeu como negra. O pai, de olhos verdes, se enfurecia quando questionavam sua identidade.
– A gente brincava: "Tu é sarará!". E ele dizia: "Não: sou negro!".
Como comandante, diz não sentir a marca da discriminação racial, mas já passou por episódios constrangedores. Quando era criança, estava na parada de ônibus quando foi insultada por uma mulher.
– Só podia ser negra mesmo! – vociferou a desconhecida.
Ela nem lembra o que provocou a afronta, talvez tenha encostado sem querer naquela senhora enquanto brincava, mas ficou assustada com o ataque gratuito – um dos primeiros em sua memória com conotação racial.
Anos mais tarde, quando estava no fim da faculdade da História, decidiu pesquisar sobre sincretismo religioso em seu trabalho de conclusão. Era uma forma de resgatar as crenças de seu povo. Católica praticante, acostumada a ir à missa aos domingos com a tia, Najara praticamente nada sabia sobre as religiões afro. Em busca de ajuda para dar os primeiros passos no trabalho, procurou Moab Caldas, jornalista e reconhecido líder umbandista.
E os questionamentos dele a surpreenderam.
– Quem é que mantém a tua faculdade? – perguntou, após ouvir sua proposta de pesquisa.
– São os padres jesuítas – respondeu.
– Numa região colonizada por quem?
– Alemães.
– E quantos negros tem na tua universidade?
– Tem eu... e mais uma menina na sala de aula. E mais um professor, que eu lembre.
– E tu pretende falar sobre sincretismo religioso? Tá louca?! Não vou te ajudar!
Najara acabou mudando de tema: escreveu sobre a Guerra dos Farrapos.
Depois de passar pelo 1º Batalhão de Polícia Militar, pelo comando ambiental, pela coordenação da Patrulha Maria da Penha e do museu da Brigada, foi designada para o comando do 21º Batalhão, na Restinga, em outubro de 2015. Sob sua responsabilidade, estão 130 soldados – sendo sete mulheres. Ela acredita que um episódio contribuiu para conquistar o respeito da tropa. Logo que assumiu, no final de outubro, o batalhão teve de supervisionar a reintegração de posse de uma área grande, que previa a retirada de mais de 300 famílias. O trabalho começou às 6h e terminou às 22h, e Najara permaneceu o tempo todo ao lado da tropa.
– Depois falaram para o meu comandante que tinham ficado surpresos, felizes, porque eu não parei em nenhum momento, caminhando no meio daquele bairro, naquela imundície, e fiquei o tempo todo com eles. Às vezes, sem querer, a gente acaba conquistando a confiança da tropa num momento como esse. Comando é isso, tu tem que estar junto. É que nem criação de filho: se tu não controlar teu filho, não estabelecer uma relação de confiança e amizade... Daqui a pouco ele é um estranho pra ti.
Na Restinga, a maior parte das ocorrências está relacionada ao tráfico de drogas.
– Mas hoje tudo é perigoso, né. Até aeroporto, supermercado... a coisa tá problemática – relativiza.
Quando precisa se concentrar, no meio da agitação do batalhão, Najara tem uma receita. Coloca os fones de ouvido em sua sala para ouvir Maria Bethânia. Acostumada a ser exceção, diz que é uma das únicas mulheres que não sabem usar salto alto e uma das poucas negras a não saberem sambar. Não cabe em estereótipos, nem se esforça para enquadrar-se. Talvez por isso, nunca teve o sonho de se casar.
Najara mora com a filha única, Natália, que passou em Arquitetura na PUCRS, e com a cadelinha Chanel, uma spitz alemã.
– Sou contra cotas, acho que tu tem que batalhar para ocupar o teu espaço. Neste Dia da Consciência Negra, a reflexão que eu gostaria de deixar vale para qualquer pessoa. Na vida, independentemente de qualquer coisa, tu precisa correr atrás dos teus objetivos, seja pobre, rico, negro, verde, amarelo.
*ZERO HORA