Quando ainda cursava eletrônica industrial na Escola Técnica Estadual Parobé, no centro da Capital, Marne Farias olhava aquelas pessoas subindo de terno e gravata no prédio da IBM Brasil (na época, em frente ao colégio) e sonhava em ser um deles.
Hoje, aos 35 anos, não é apenas mais um deles. Coordenador de serviços na área técnica e de infraestrutura da companhia no Estado, chefia uma equipe de 24 pessoas e também é líder do grupo de diversidade afrodescendente da multinacional no país.
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A meta foi perseguida com afinco. Aos 19 anos, já trabalhava com carteira assinada em uma empresa de processamento de dados quando soube que havia um processo seletivo na IBM. Decidiu se inscrever, disputando com mais de 700 pessoas. Passou por testes técnicos, psicotécnico, entrevistas em inglês. Na etapa final, seu futuro gerente lhe disse que os dois cargos efetivos já haviam sido preenchidos. Mas ainda havia uma oportunidade.
– Você trocaria seu emprego por uma vaga de estágio? – perguntou.
– Óbvio! – respondeu Marne, mesmo sabendo que ganharia cerca de 20% menos.
Disposto a mostrar seu talento, dedicou-se com "sangue nos olhos", como descreve, aos projetos de instalação e configuração de equipamentos da companhia pelo Interior. Na mesma época, sua mulher, Joana, ficou grávida do primeiro filho.
– Eu era um guri querendo mostrar trabalho. Saía no domingo, voltava no sábado, dava um beijo na esposa que estava com um barrigão e saía de novo – lembra.
A recompensa veio com a satisfação de um cliente, que numa reunião comentou com seu chefe:
– Cara, tem um moleque que está fazendo umas coisas muito boas, o pessoal está gostando do atendimento dele.
– Ah, é o estagiário – respondeu o gerente.
– Vocês têm que efetivar ele! – defendeu o cliente.
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Marne, que estava voltando de uma instalação em Santa Maria, ainda suado da viagem, chegou no final da reunião, a tempo de ouvir os elogios. Acabou contratado. Após ingressar como técnico júnior, fez cursos de qualificação e passou a assumir cargos de gestão. Durante dois anos, foi gerente de projetos na área de entrega de serviços, em São Paulo e, há oito meses, assumiu como coordenador de serviços no Estado. Chefia a equipe técnica que faz o atendimento a clientes corporativos, incluindo na lista os principais bancos do país e uma série de instituições públicas.
O conhecimento técnico aprendido na escola foi importante, mas Marne credita ao legado familiar boa parte das qualificações que adquiriu para crescer na carreira.
– Minha mãe dizia: "Filho, você tem que ser duas vezes melhor". E às vezes eu me vejo falando para o meu filho: "Nove pra mim é média!" – ri.
Em vez de ficar assistindo a He-Man quando era pequeno, ouvia a mãe contar a história de Zumbi dos Palmares, dos Quilombos, da participação dos negros na Guerra do Paraguai, da Revolta da Chibata. Engajado, Marne começou a dar aulas de capoeira aos 15 anos, para crianças na periferia de Viamão, a cidade onde nasceu e ainda vive. Antes que suspeitasse, começou a desenvolver ali ferramentas de gestão fundamentais para sua ascensão.
– Não sabia que precisava estudar processos, fluxos, metodologias, mas fui aprendendo a fazer isso enquanto ajudava as comunidades. Dava aula nos bairros com maior índice de criminalidade, onde as crianças são mais expostas. E fui aprendendo a fazer projetos porque precisava que a prefeitura desse uma verba mínima para conseguir camisetas para os alunos, já que no inverno não dava para fazer capoeira só de abadá – conta.
Anos depois, já na IBM, a experiência o ajudou a conquistar uma certificação internacional focada em gerenciamento de projetos, chamada Project Manager Professional ("É uma das mais difíceis do mundo de conseguir", orgulha-se).
À medida que foi crescendo na empresa, Marne começou a estimular discussões internas sobre a questão racial. Na rede social corporativa, se via algum comentário sobre cotas, manifestava sua opinião e defendia a necessidade de qualificação de negros. A firmeza de suas posições lhe rendeu o convite para assumir a liderança afro na empresa.
– Já há um grande foco na inclusão de mulheres, na diversidade sexual, o pink money, e na inclusão de PCDs. Queremos mostrar como a empresa pode ganhar mais dinheiro com diversidade racial, esse é o trabalho que eu tenho como foco – explica.
Por questões de política interna, a companhia não autoriza a divulgação de números de trabalhadores negros. Mas o total daqueles que se identificam como parte da comunidade negra na IBM Brasil cresceu de menos de uma dezena, há um ano e meio, para "centenas".
– Criamos um fórum de qualificação e capacitação profissional, o fórum Ubuntu, que em iorubá significa "eu sou porque nós somos". Queremos primeiro trabalhar a identidade, para que as pessoas negras possam se assumir como negras, sabendo que isso não vai prejudicá-las. Depois, queremos trabalhar a representatividade e fazer proposições, com ganhos para a pessoa e para a companhia – detalha.
Se, dentro da empresa, Marne conquistou o respeito, nos momentos de lazer, quando tira o terno e a gravata, ainda tropeça em discriminação pelas esquinas. Um dia, estava de bermuda, sem camisa, andando com a filha perto de sua casa, em Viamão, quando foi parado por um policial.
– Minha filha tem uma tez um pouco mais clara, e me pararam porque eu era "um tipo suspeito" andando com uma criança – indigna-se.
Marne também já foi parado em blitz policial. Mandaram só os jovens negros descer do ônibus e os colocaram de costas para a parede. Ele questionou o porquê daquela ação. O policial ironizou:
– Você está sendo muito espertinho, para um negro você está sendo inteligente demais.
Ao revistar a mochila de Marne, o agente desconfiou ao ver o computador.
– Eu trabalho com isso – disse Marne.
Durante o procedimento, o policial deixou cair o laptop no chão – a ponta ainda está lascada, diante da mesa, onde ele agora dá a entrevista, em uma sala reservada do 11º andar de um edifício onde fica a IBM em Porto Alegre, no bairro Praia de Belas.
– Não é uma questão que diz respeito só aos negros, o racismo é um problema social. Se não for discutido, se continuar mascarado, vai continuar se refletindo em todos os demais componentes da sociedade – preocupa-se.
Em dias de casual day, Marne vai à empresa trajando bata. Sabe que a vestimenta é também um marcador social – lhe incomoda a ideia de que negro só é respeitado se estiver vestindo terno.
– Vejo na timeline: "somos todos humanos", "somos todos Maju". E quando a gente generaliza é que a gente mais invisibiliza. Se se diz "somos todos mulheres…", é o momento em que invisibiliza a mulher, porque se se diz que todo mundo é igual, se esquece da dor da mulher que não consegue chegar ao mesmo cargo que o homem. Ou o quanto o negro tem que se colocar numa posição normativa para ser aceito... Não pode usar dread, tem que usar o cabelo o mais baixo possível para se aproximar de um padrão. Ou não usar bata… Tem que usar terno.
Ele compara o Dia da Consciência Negra ao Dia Internacional da Mulher, em 8 de março. Assim como ele sabe que as mulheres não se contentam em "ganhar uma rosa" como símbolo de igualdade, diz que os negros não querem ser lembrados apenas no dia 20 de novembro.
– Todo dia 20 recebo de vários amigos aquele discurso do Morgan Freeman dizendo que não tinha que existir o Dia da Consciência Negra. Ou gente dizendo "que pessoa negra bonita você é”, ou "você nem é tão negro assim", "você é negro com alma de branco". Tentam elogiar nesse dia, achando que é legal, mas não percebem o quanto tem de preconceito nisso.
Num mundo ideal, ele concorda que a data não precisaria existir. Mas o quão distante estamos disso?
– Enquanto isso não acontece, continuemos com o 20 de novembro, com a luta contra tudo que ainda separa os negros e os coloca como cidadãos de segunda classe.
Divulgada recentemente pelo Instituto Ethos, a sexta edição do Perfil Social, Racial e de Gênero das 500 Maiores Empresas do Brasil e Suas Ações Afirmativas dá uma ideia desse desequilíbrio. Os negros, que são 52,9% da população do país, representam apenas 6,3% dos quadros de gerência, 4,7% do quadro executivo e 4,9% dos conselhos de Administração – e isso considerando-se a soma de pretos e pardos. Se fossem considerados apenas os pretos, seriam 0,6% dos quadros de gerência, 0,5% dos executivos e 0% do Conselho de Administração.
Ao mesmo tempo em que celebra a ascensão profissional, Marne lamenta o fato de fazer parte da exceção.
– Não deveria ser significativo comentar que tem uma pessoa negra trabalhando no meio privado porque ela manda em outras.
*ZERO HORA