IMAGENS: ANDRÉ ÁVILA
O VIZINHO INVASOR
Arquipélago, 17/8/2013 – Um homem invadiu a casa de uma vizinha em uma das ilhas de Porto Alegre, jogou no chão calcinhas e sutiãs estendidos no varal e agarrou uma irmã da moradora.
A gritaria chamou a atenção de outros vizinhos, que se aproximaram. Assustado com o tumulto, o homem fugiu em um barco pelo Guaíba. O registro que chegou à delegacia como um caso de estupro, com pena mínima de seis anos, terminou resumido a um episódio de perturbação de tranquilidade, contravenção leve que tem como punição prisão de 15 dias a dois meses ou pagamento de multa.
Ninguém compareceu à audiência de conciliação, em março de 2016, e a Justiça arquivou o processo.
O BEIJO FORÇADO
Mont'Serrat, 13/1/2015 – Uma mulher de 34 anos despertou com o latido do cachorro. Eram 2h da madrugada e alguém batia à porta. Pelo olho mágico, viu que era um vizinho. Ela o recebeu para saber o motivo da visita, ele a agarrou e tentou beijá-la. No mesmo dia, a mulher registrou ocorrência na delegacia. Contou sentir-se traumatizada.
O homem foi chamado para prestar esclarecimentos à polícia. Limitou-se a dizer que tentou se aproximar para beijar a vizinha, mas, diante da negativa, desistiu. Ele sofre de bipolaridade e, naquele dia, havia tido uma crise.
Como o homem não usou de violência, a polícia decidiu indiciá-lo pela contravenção de perturbação de tranquilidade. O Ministério Público o denunciou, e o processo está na Justiça.
A RECEPCIONISTA E O SEGURANÇA
Centro Histórico, 29/4/2015 – Um segurança tinha por hábito assediar a colega recepcionista no ambiente de trabalho. Dizia para ela que estava "com tesão" e exibia imagens pornográficas. O constrangimento chegou ao limite quando ela o flagrou se masturbando ao assistir a vídeos no celular atrás do balcão de entrada do prédio.
A recepcionista decidiu mostrar o material para o seu gestor e para um colega. Dias depois, o segurança foi transferido para outra unidade, e a mulher, demitida. Indignada, ela denunciou o homem à polícia. Ele se defendeu dizendo que era ela quem se insinuava. Diante do vídeo apresentado pela vítima, a polícia indiciou o homem pelo delito de ato obsceno. O processo tramita na Justiça.
A PASSADA DE MÃO
Centro Histórico, 1º/4/2015 – Em um fim de tarde, um homem passou a mão nas nádegas de uma mulher que caminhava pela Avenida Borges de Medeiros, nas proximidades do Mercado Público, e lhe sussurrou "que delícia" ao ouvido. No agitado Centro Histórico, a cena chamou a atenção de gente que passava pelo local. Ele foi xingado e imobilizado até que chegasse um policial.
O PM que estava em policiamento a pé prendeu o homem e o apresentou ao plantão do Palácio da Polícia. Levado ao Presídio Central, o suspeito ficou menos de 24 horas e foi solto. O homem foi indiciado por perturbação de tranquilidade, uma vez que não houve comprovação de violência. Em fevereiro deste ano, o processo judicial se extinguiu porque a vítima desistiu de levá-lo adiante.
Casos como essesnão chegariam à polícia como um episódio de estupro antes de 2009. Até então, a lei entendia por violência sexual somente os casos em que havia penetração vaginal. Outros abusos seriam enquadrados como tentativa ou atentado violento ao pudor.
A ampliação do que se considera violência sexual pelo Código Penal brasileiro ocorreu há sete anos. Hoje, qualquer ato carregado de conotação sexual sem consentimento incorre no artigo 213.
– Os crimes foram unificados em um só e hoje tudo se considera estupro: passar a mão no seio ou nas nádegas ou forçar sexo oral e anal, por exemplo. O que, às vezes, gera uma dificuldade no julgador, porque se perde a proporcionalidade, uma vez que a lei prevê pena mínima de seis anos para qualquer tipo de abuso sexual – comenta Vanderlei Teresinha Tremeia Kubiak, desembargadora do Tribunal de Justiça do Estado (TJ-RS).
O CASO DA REDENÇÃO
9/3/2015 – A estudante universitária havia descido do ônibus na Avenida João Pessoa, por volta do meio-dia de uma segunda-feira, no rotineiro retorno da faculdade para casa. Dois homens a abordaram, taparam a sua boca e a arrastaram por 80 metros até as proximidades do lago no Parque da Redenção. Os agressores ficaram frente a frente, com a vítima entre eles, e passaram a mão pelo seu corpo, por dentro da roupa.
Os dedos dos agressores e o barulho dos carros abafavam os gritos da vítima, insuficientes para mobilizar uma intervenção de quem estava no parque. A jovem lutou para se desvencilhar, e os homens a soltaram minutos depois. Fugiram em direção à Avenida Loureiro da Silva levando o seu celular, enquanto a universitária corria no caminho oposto em busca de ajuda.
Foi acolhida pela própria mãe, que passava pela Rua Garibaldi. Seguiram para casa, onde a estudante tomou banho e decidiu que não registraria ocorrência. Mudou de ideia por insistência da família e seguiu para a Delegacia da Mulher. No local, descobriu que a própria polícia iria desestimulá-la.
A universitária contou ter sido demovida de denunciar o crime porque "não daria em nada" e criticou em suas redes sociais o atendimento recebido pela instituição que deveria protegê-la. Dois dias depois de publicado o desabafo, a polícia abriu uma investigação para apurar o estupro.
– À medida que a instituição responsável pela investigação deslegitima a violência e a vítima, dá condições para que a sociedade se manifeste do mesmo modo. Temos um pensamento médio da sociedade que acredita que a responsável pela violência sexual é a mulher. Está enraizado – lamenta a socióloga Wânia Pasinato.
Na Redenção, um morador de rua disse ter ouvido os berros de uma mulher e visto dois homens deixando o parque no dia do ocorrido. Ele os conhecia. Eram usuários de drogas que cometiam roubos na região para sustentar o vício.
Com base na descrição da vítima, o Instituto-Geral de Perícias (IGP) produziu retratos falados dos suspeitos, e a polícia os divulgou na imprensa. Duas semanas depois do crime, um policial militar avistou um homem que se parecia com as imagens durante uma ronda na Redenção e o apresentou ao plantão da Delegacia da Mulher. Chamada para reconhecê-lo, a universitária não teve dúvidas: estava diante de um de seus agressores.
O homem tinha mais de 30 passagens pela polícia por furto e roubo. Em perfil no Facebook, apresentava-se como morador da Redenção. No mesmo dia, ele teve a prisão preventiva decretada e foi recolhido ao Presídio Central. Uma semana depois, foi indiciado por estupro e roubo. Ele se disse inocente – afirmou que recolhia lixo em outro ponto do parque no momento do crime.
O Ministério Público denunciou o suspeito, e o processo seguiu para a Justiça. Foi marcada para junho de 2015 a primeira audiência. Pela terceira vez, a universitária se encontraria com o agressor.
Vítima e réu deram as suas versões. Ela repetiu o relato, mas ele se mostrou incapaz de responder a qualquer pergunta. Disse ser guiado pelas "veredas da justiça do céu" e que havia morrido em decorrência de aids, mas ressuscitara.
O depoimento desconexo motivou a Justiça a substituir a prisão por uma internação no Instituto Psiquiátrico Forense (IPF). Mais tarde, peritos atestaram insanidade, decorrente do uso de drogas.
Há seis meses, a Justiça deu por encerrado o caso. O quadro de esquizofrenia impedia a responsabilização pelo estupro. A Justiça decidiu mantê-lo internado para tratamento no IPF durante, no mínimo, três anos.
Nunca foi identificado o segundo suspeito. E a certeza de que ao menos um de seus agressores está distante não ameniza o trauma da vítima.
– Não me sinto aliviada, porque a dor não passa. Hoje, eu ando com medo. Existe um esforço para que se siga em frente, mas é uma coisa que você lembra todo dia – ela afirma.
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TRÊS IDEIAS PARA FREAR A CULTURA DO ESTUPRO, AMENIZAR O DRAMA DAS VÍTIMAS E DIMINUIR A IMPUNIDADE
"Não se trata de implementar penas mais graves e de mais leis. Precisamos que as penas e as leis sejam aplicadas e, para que isso aconteça, temos que modificar as práticas institucionais de investigação, processo e julgamento da violência contra a mulher no país. O atendimento, ainda hoje, não é qualificado. É importante que haja capacitação e formação permanente dos profissionais."
Wânia Pasinato
Socióloga especialista em políticas de enfrentamento à violência de gênero
"O quadro de impunidade é um dos elementos de perpetuação da cultura de estupro, mas não só a impunidade criminal. Existem ações que alimentam essa cultura, como a naturalização das violências contra as mulheres, a cultura machista impregnada no cotidiano e a forma de tratamento de questões da sexualidade. Há uma ideia de não permitir a discussão de temas sexuais nas escolas, o que só contribui para reforçar essa cultura de opressão."
Kenarik Boujikian
Juíza do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), responsável pela sentença de 278 anos de prisão do médico Roger Abdelmassih, em 2010, pelo estupro de 56 pacientes
"Precisamos passar por uma transformação cultural, abordando já com as crianças, dentro da sala de aula, a reflexão sobre gênero para que se inibam práticas de violência contra a mulher. E sempre estimular a denúncia, não somente por parte da vítima, mas de toda a sociedade, para que se acolha a vítima e se responsabilize o agressor. O silêncio é o maior cúmplice da violência."
Tatiana Bastos
Delegada adjunta da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher de Porto Alegre
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