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JÚLIO CORDEIRO
Desde 2014, o dr. Adolph Fritz, um médico alemão que morreu há quase cem anos ou que nunca existiu, realiza atendimentos e opera pacientes em cidades gaúchas. Essa é a crença que anima centenas de pessoas a seguir Mauro Pacheco Vieira, 33 anos, um médium de Santana do Livramento que diz receber o espírito do clínico germânico e servir de instrumento para tratamentos por ele realizados. Nessa condição, Vieira se dedica à mais impressionante e controversa das modalidades não-reconhecidas de terapia: as cirurgias espirituais, que envolvem cortar e espetar objetos no corpo dos doentes, sem qualquer forma visível de anestesia ou assepsia.
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Em um fim de semana gelado de junho, o santanense fez sua estreia em Porto Alegre. Atraídas por postagens nas redes sociais, cerca de 200 pessoas afluíram ao galpão do Centro Administrativo Regional da Lomba do Pinheiro. Encontraram três dezenas de voluntários trajados de branco da cabeça aos pés, como se fossem enfermeiros, quase todos usando toucas e máscaras cirúrgicas. Acomodados em fileiras de cadeiras, os visitantes acompanharam cerca de uma hora de doutrinação e orações.
– Muitas vezes não vamos receber a cura, porque não somos merecedores. Quem cura é a fé – avisou a oradora.
Vieira, um homem de 1m55cm, o único da equipe vestido de azul, falou brevemente e permaneceu a maior parte do tempo em silêncio. Por fim, retirou-se para uma espécie de tenda. Era o momento de sentar, concentrar-se e, com a oração de um punhado de voluntários selecionados, incorporar Dr. Fritz. Depois de alguns minutos, ele emergiu junto ao público, alterado, a voz diferente, mais gutural. Faz parte da tradição recorrer ao sotaque alemão, mas no caso do gaúcho essa característica parecia limitada a trocar o gênero de uma ou outra palavra.
– Levantem, brasileiras! – ordenou.
Sempre cercado e auxiliado pelos voluntários, começou a prestar os atendimentos, primeiro caminhando pelo salão e escolhendo algum paciente, depois recebendo-os em fila. Os ajudantes atuavam como fiscais, proibindo que qualquer pessoa cruzasse os braços, o que poderia bloquear energias. Devanir Silva da Rosa, 60 anos, moradora da Lomba do Pinheiro, teve um câncer há uma década e ficou com sequelas nos rins e no intestino. Abordada pelo médium, ganhou um frasco com uma água supostamente medicinal e a recomendação de seguir o Dr. Fritz por três meses, onde quer que ele estivesse. Na terça-feira passada, contou não ter voltado a procurá-lo, por causa da distância. Mas acredita que o atendimento deu frutos:
– Teve todo o efeito. Só melhora.
Outros atendimentos foram muito mais invasivos. De bandejas metálicas, o médium recolhia bisturis, agulhas, tesouras e seringas. Uma mulher teve as costas laceradas, e o sangue brotou. Em pacientes com problemas de visão, Vieira enfiou lâminas e agulhas nos olhos. Kauana Dahmer, 21 anos, viu o médium espetar-lhe uma espécie de bastão narina adentro. Ela sofre há anos de enxaqueca.
– A única coisa que senti foi uma ardência. Quando entrei aqui, percebi uma vibração boa. Cheguei com dor na cabeça e já sossegou – garantiu.
Um mês e meio depois, Kauana disse que continua com dores de cabeça, mas que elas diminuíram.
O funcionário público Herno Campos, 53 anos, há dois anos em licença por causa de um câncer inoperável no cérebro, teve o topo da cabeça raspado com um aparelho de barbear descartável. Depois, o médium fez um corte de dois ou três centímetros no crânio e cravou agulhas dentro da incisisão.
– Não senti dor, só uma sensação como se estivesse saindo sangue. A cicatrização foi rápida – disse Campos, que complementa a quimioterapia com diferentes atendimentos mediúnicos.
Dr. Fritz é uma espécie de franquia atuante há mais de meio século no mercado brasileiro das curas miraculosas. O primeiro médium que disse incorporá-lo foi o mineiro José Pedro de Freitas, o Zé Arigó, ainda na década de 1950. Usando facas de cozinha e canivetes enferrujados, tornou-se famoso por supostamente extirpar quistos e tumores. Foi perseguido, julgado, condenado e preso por curandeirismo. A partir de então, difundiu-se a lenda de Adolph Fritz, o médico que teria tratado feridos durante a Primeira Guerra Mundial e que morrera em 1918, aos 42 anos. Jamais se conseguiu comprovar que o alemão realmente existiu.
Após a morte de Arigó, em 1971, muitos clamaram receber Fritz, como o pernambucano Edson Queiroz e os irmãos baianos Edivaldo Wilde e Oscar Wilde. Formado em Medicina, Queiroz foi um dos médiuns estudados durante anos pelo antropólogo americano Sidney Greenfield, que, no livro Spirits with scalpels (espíritos com bisturis), registrou: "Observar esses eventos e acompanhar seus efeitos nos pacientes me forçou a questionar quase tudo que eu sabia sobre a cura e sobre as práticas da medicina e da cirurgia. De que maneira pacientes que não receberam nada para evitar a dor puderam ser cortados sem sentir qualquer coisa? Por que eles não desenvolveram infecções ou outras complicações, quando operados com instrumentos sujos?"
Os médiuns que incorporaram Fritz tiveram relação conturbada com as autoridades. Um exemplo recente é o engenheiro Rubens Farias Júnior. No auge, nos anos 1990, atendia celebridades e era figura assídua na mídia nacional. Em 2009, foi condenado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro a indenizar em R$ 25 mil e a pagar pensão a um serralheiro que deixou incapacitado em decorrência de uma cirurgia espiritual. Também foi acusado pelo Ministério Público paulista por homicídio. Os promotores entenderam que ele havia antecipado a morte de uma doente de leucemia, ao convencê-la a abandonar o tratamento convencional. Farias foi absolvido, mas parou de atender.
Atualmente, em um mesmo dia, na mesma hora, é usual que o Dr. Fritz esteja operando em múltiplas partes do país, incorporado em diferentes indivíduos. Entre os mais conhecidos estão Kleber Aran, que atua em capitais do Nordeste, e Eliane Gonçalves, que presta atendimento em Sabará (MG). ZH tentou falar com ambos, sem sucesso. Aran comunicou por meio de assessores ainda não ter obtido autorização de Fritz para conceder entrevista. Eliane limitou-se a ditar uma mensagem, lida por uma funcionária: "Ela não teria nada a dizer. Ela prefere ficar como esteve estes anos todos, no cantinho dela. Ela é só um instrumento. Nada mais".
Com Vieira, essas dificuldades não existiram. Em uma conversa de duas horas, ele relatou ter nascido no distrito de Pampeiro e ter cursado apenas até a 6ª série. Por não gostar de estudar, deixou o colégio aos 13 anos e foi trabalhar como servente de pedreiro. Ainda adolescente, por influência do irmão, começou a frequentar centros de umbanda.
– Foi amor à primeira vista. Cada porta que se abria, eu queria saber mais – disse.
Por volta dos 17 anos, conta ter se descoberto médium, recebendo pela primeira vez o caboclo Arranca Toco, que afirma ser um cientista alemão.
– A primeira vez foi, como dizer a palavra? Maravilhoso. Ia ser mais um dia normal, eu ia girar, ia desenvolver, depois ia pegar o tambor. Mas naquele dia, não. Aconteceu. Quando incorporei, deixei de ter a consciência. As ações foram fantásticas, porque eu me via no meu corpo mas sem dominar o meu corpo.
Ainda hoje, Vieira mantém um centro de umbanda em Santana do Livramento, no qual recebe o caboclo para cirurgias invisíveis. No começo de 2014, Arranca Toco anunciou-lhe que passaria a receber um outro "espírito de luz":
– Eu senti a diferença de energia na desincorporação. Quando recuperei a consciência, os médiuns da casa me relataram que ele tinha se apresentado como dr. Fritz.
Como associava Fritz ao universo kardecista, distante da umbanda, Vieira abriu para a nova entidade uma casa à parte, onde começou a realizar as cirurgias espirituais e a oferecer medicamento – uma porção de água "energizada no laboratório espiritual", o que a transformaria no remédio especifico para cada doente. Recentemente, transferiu o centro para Rosário do Sul, onde diz ter ganho um terreno para construir um hospital.
– Em Livramento, eu tinha casa própria. Em Rosário, moramos de aluguel. Mas foi pelo trabalho. O Dr. Fritz pediu para eu ficar perto do hospital dele, para acompanhar a construção.
O médium atende duas vezes por mês em Rosário e viaja eventualmente pelo Estado. Não cobra pelos atendimentos e se sustenta graças a uma loja de artigos religiosos. Quando incorpora Fritz, diz que sua consciência entra em um estado de dormência ou de sonambulismo. No princípio, afirma, teve medo dos procedimentos:
– O trabalho do Fritz tem de ter total competência, então uma mínima interferência no médium pode causar até uma fatalidade. Quando as pessoas começaram a relatar o que o Fritz fazia, foi meio difícil de engolir. No início, eu ia atrás dos pacientes que ele tratava, para saber como é que era, como é que foi. Hoje já tenho uma confiança nele. Posso dizer que agora somos amigos.
Segundo Vieira, não é só Fritz que realiza as curas. O alemão contaria com uma equipe de 350 espíritos especialistas nas mais diversas áreas da medicina.
– Quando acha necessário, ele cede lugar ao Dr. Joseph ou ao capitão Hausen. É como um hospital, que os olhos do ser humano não veem.
Fritz é apenas um entre uma multidão de espíritos que médiuns brasileiros dizem receber. No Rio Grande do Sul, o nome mais eminente é o do deputado estadual Marlon Santos (PDT), que ganhou notoriedade realizando cirurgias mediúnicas em Cachoeira do Sul – e acabou elegendo-se vereador, prefeito e depois deputado.
No âmbito brasileiro, o médium mais célebre é João Teixeira de Faria, o João de Deus, de Abadiânia (GO), famoso mundialmente após uma entrevista à apresentadora de TV americana Oprah Winfrey. Hoje, a cada semana, ele é procurado por cerca de 3 mil pessoas, incluindo políticos e celebridades. O psiquiatra Alexander Moreira-Almeida, coordenador do Núcleo de Pesquisa em Espiritualidade e Saúde da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG), estudou João de Deus e constatou que os cortes realmente ocorriam e que tecidos eram, de fato, extraídos dos doentes, tudo isso sem antisséptico ou anestésico.
– A maioria dos pacientes não referia dor, e não observamos infecções durantes os três dias de seguimento. Por outro lado, os tecidos extraídos não eram patológicos, ou seja, não explicariam uma possível cura, caso ela viesse a ocorrer – recorda.
Moreira-Almeida propõe três hipóteses para os relatos de cura: o sucesso do tratamento médico convencional feito paralelamente à cirurgia espiritual, a evolução natural da doença, levando a uma remissão espontânea, e, por fim, o efeito placebo:
– A crença forte do paciente pode fazer com que ele se sinta melhor e até mesmo ativar mecanismos saudáveis de seu organismo. Se esses mecanismos não forem suficientes para explicar certos relatos de cura, seria preciso desenvolver outras hipóteses. Casos bem documentados poderiam auxiliar a medicina.
Um grupo que encara a ação de figuras como João de Deus ou o gaúcho Mauro Vieira com especial reserva ou franca desaprovação é o dos espíritas. Vice-presidente da Federação Espírita Brasileira, Marta Antunes observa que cirurgias espirituais não são uma prática relacionada com a doutrina.
– A finalidade da doutrina é a transformação moral. Essas cirurgias podem funcionar, mas quando envolvem cortes são ilegais. Mesmo que seja com o intuito de fazer o bem, é curandeirismo. Chico Xavier, que foi uma pessoa muito enferma, não ia nesses médiuns, recorria a médicos – adverte.
Segundo Marta, há algumas incongruências na forma como se utiliza a figura do Dr. Fritz. De acordo com a doutrina, diz ela, não seria de esperar que o alemão permanecesse tantas décadas na condição de espírito – o normal seria ter reencarnado. Ela também considera impossível que ele se manifeste ao mesmo tempo em diferentes médiuns.
– Um espírito pode irradiar seu pensamento, e vários médiuns o captarem. Mas, no caso das cirurgias, é muito difícil, porque ele tem de estar ali presente para fazer as incisões, para tirar o tumor.
Presidente do Instituto Espírita Dias da Cruz, Éder Geraldo Cardoso é mais enfático na crítica. Ele afirma, por exemplo, que um espírito não tem como realizar manipulações no mundo físico.
– Para começar, não existe incorporação – diz Cardoso. – Não existe o espírito entrar no teu corpo. O que existe é uma ascendência. É muito complicada essa questão das cirurgias, desses médiuns que tocam nas pessoas e que fazem aquele teatro, porque para mim é um teatro. O problema é que a pessoa que está no desespero terminal acredita em qualquer coisa. E aí os caras abusam.
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